O Coração Ainda Bate. O rapaz dos cães

Inês Meneses regressa a um passeio onde a infância acontece.

Comecei, nestes dias, a sentir falta dos passeios matinais que fazia com a minha filha até à escola. Moramos num bairro onde tudo se pode fazer a pé, passando inclusivamente pelos pequenos quintais que pespontam as casas em volta.

Um dia descobrimos que o percurso curto que nos levava até à escola primária podia ser feito de outra forma, um atalho que me colocava a mim, de novo, na aldeia, entre árvores, flores e pequenos muros. Os pezinhos dela, nas galochas coloridas, esmagavam com prazer as folhas que cobriam o chão. Vimos as estações do ano a sucederem-se nesses passeios ao mesmo tempo que as perguntas novas dela me traziam a consciência de que ela estava a crescer e eu a avançar pela vida, sem atalhos.

Era muito curioso passarmos todos os dias à mesma hora pelas mesmas pessoas. Havia um rapaz tatuado, de fones, que trazia os seus cães à rua. Muitos. Um manto de pelo que ele fazia deslizar com prazer. Eu ia e vinha com esses rostos cravados, divertindo-me a imaginar como seria a vida de cada uma dessas pessoas. Como seria a casa do rapaz dos cães? Grande o suficiente para todos terem o seu canto? E que música ouvia ele enquanto os passeava? E as tatuagens? Marcariam um tempo ou seriam um processo em contínuo? Nunca tive resposta para essas perguntas. Não que não o pudesse interpelar como tantas vezes fiz noutras situações, mas também porque gosto do mistério que persiste nas respostas imaginadas. O rapaz dos cães faz parte de uma banda desenhada que aconteceu num tempo na minha rua. A minha filha cresceu, já não usa galochas. Há anos que deixei de a levar pela mão na rua. Quando acordo, mais tarde, vou sempre ao quarto dela perceber o rasto que deixou. Às vezes trocamos pequenos bilhetes que ficam da noite para o dia ou encenamos pequenas fábulas com animais de louça que se encontram pela casa. Um código nosso que não se perdeu com o tempo.

Nestes dias senti uma nostalgia inexplicável ao ver bandos de miúdos junto às escolas aqui perto. Agora que escrevo fico confusa pensando se as saudades são do tempo em que também eu fui criança e ia com entusiasmo conhecer novas respostas ou se me ressinto do tempo em que a minha filha me dava a mão, confiando em mim nesse passeio matinal. No desenho mental que faço de mim própria sou sempre a mesma, ou seja a mãe que levava a filha pela mão ou a miúda que ia para a escola na aldeia encontram-se no mesmo passeio. A vida pode ser esse longo passeio quando não surgem inesperados desvios.

Numa destas tardes em que corri à farmácia para uma compra de última hora, apanhei um desses bandos de miúdos que enchem as ruas vociferando ou rindo do absurdo. Não se procura ainda o significado de nada, apenas a inconsequência nos valida sem querer. Cheguei à farmácia no momento em que eles passavam frente à montra envidraçada e, então, inesperadamente, quando as portas automáticas se abriram, os miúdos começaram a gritar muito alto: “pre-ser-va-ti-vos”. Riam alto e repetiam a palavra que não vinha em nenhum manual da escola, mas era a grande aprendizagem destes dias. Ri-me. Quase quis ser um deles. Depois percebi que era prática habitual. Tinham um metro e riam sem tamanho. Tive saudades desse riso inconsequente dos dias em que ganhamos vida por dizer uma asneira.

As ruas do meu bairro são o livro que ainda não escrevi: vivem nele tantas personagens que me enchem de perguntas e me devolvem ao passado com uma inquieta nostalgia. Quero ser de novo a mãe da minha filha pequenina e quero atravessar a rua para a abraçar, já crescida, quando a encontro sem contar, a horas imprevistas.

O bairro reserva-me surpresas porque as quero encontrar. A melhor, guardei-a hoje para o fim.

Quando em Setembro as aulas recomeçaram, levei de novo a minha filha à escola. Já não fomos de mão dada e agora tínhamos o metro a abreviar o nosso caminho. Era de manhã cedo, anos tinham passado sobre os nossos passeios pelo bairro. Na rua de sempre, do lado dos números ímpares, surgia o rapaz dos cães. Ali estava ele com ar feliz, os fones por companhia e um manto ainda maior de pelo à frente dele. Eram mais os cães e ele, sem hesitar, ao fim de vários anos, disse-me pela primeira vez: “olá”.

O meu livro vai-se escrevendo com gente ainda sem nome. A vida está toda na rua.

O coração ainda bate

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