Ser adulto é difícil

As crianças criam uma história sobre o mundo a partir do seu ponto de vista e do ponto de vista daqueles com quem crescem. Essa história é aquilo em que a criança se torna.

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“Ouçamos as crianças, pois elas têm sempre razão.” João da Silva
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Eu estava atrasado e, por isso, contrariamente ao habitual, acelerado. Já com a porta de casa aberta, apressei a pequenita, de quatro anos, para que se calçasse. Ela respondeu-me assim: “Papá, ser adulto é difícil. Lavam a loiça, passam a ferro, lavam a roupa, conduzem, não brincam. Eu quero estar muitos dias criança e poucos dias adulta.”

Encaixei o recadinho e abrandei imediatamente. Não nos gestos, até porque continuava atrasado, mas no estado de espírito. Nesse instante, recordei um pensamento antigo que creio tratar-se de um provérbio chinês. Cito-o de memória: “Ouçamos as crianças, pois elas têm sempre razão.” Não têm sempre, claro que não, de forma alguma, mas neste caso…

Não me fiquei.

— Não se diz “eu quero estar muitos dias criança”, mas sim “eu quero ser criança muitos dias”, está bem, Estrelinha? —, corrigi. Se o conteúdo não tinha refutação possível, restava-me emendar a forma. São só quatro anos, eu sei, é normal, e esta forma desajeitada de dizer as coisas derrete-me e faz-me sorrir todos os dias. Quem me dera que nunca deixasse de ter esta idade, mas não a podia deixar sem troco.

— Está bem —, respondeu, com aquele ar condescendente e ternurento que as crianças exibem quando percebem que nos deixaram sem resposta adequada à altura da sua pureza, sinceridade, verdade e sabedoria.

“Estarei a exagerar no elogio que faço à sabedoria das crianças e à sua capacidade de perceber os adultos e de simplificar o mundo?”, indaguei-me ao escrever as últimas linhas. Não me parece. Provavelmente estou a pecar por defeito. Elas decifram-nos sem dizermos uma única palavra sobre o que estamos a sentir.

As crianças criam uma história sobre o mundo a partir do seu ponto de vista e do ponto de vista daqueles com quem crescem. Essa história é aquilo em que a criança se torna. Devíamos tentar perceber mais frequentemente que história está a criança a escrever.

Já no carro, olhei rapidamente para trás.

— Os adultos também brincam, Estrelinha —, disse, pensando em algumas ocasiões em que me procurou para brincar e eu lhe disse que estava a trabalhar.

— Está bem.

—E mais: queixas-te de barriga cheia.

— A barriga cheia de quê, papá?


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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