De volta ao lar

Estar de volta ao palco é um reencontro não só com o público, mas com uma parte de mim que ficou em pausa. É como vestir novamente uma roupa antiga que nunca perdeu o caimento.

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“Boa noite, admirável público!

Boa noite, meus velhacos! Boa noite, meus vagabundos!

É uma notável surpresa ver vocês aqui novamente para assistir um espetáculo nosso. Não, não é surpresa, nós estávamos ávidos para que os senhores chegassem... E para que os senhores façam as suas ácidas críticas. Podem nos arrebentar, podem falar tudo o que acharem de ruim de nós, falem o que quiserem. Nós não daremos a mínima atenção aos senhores! Nós estamos aqui para nos divertir e, para isso, vamos abrir as nossas cabeças, aumentarmos o volume delas e... fazermos uma viagem inesquecível.

Essa peça começa em 1900, e vem até hoje, ou melhor, ela começa quando começou o teatro. E vai até o infinito do teatro. Esse atemporal nos faz querer mostrar aos senhores os loucos que fugiram para o circo, porque o teatro é a arte do impossível.

O teatro é a arte da utopia.

Nós damos um passo, o teatro dá dois passos. Nós damos dois passos, o teatro dá quatro passos. Para isso, serve a utopia, para seguirmos caminhando. Por isso, o teatro é o asilo de loucos, onde o publico vem a procura de sua razão.

E vamos lá, vamos lá!"

Assim, Antônio Abujamra, o grande diretor de teatro brasileiro que nos deixou em 2015, aparece em vídeo recebendo o público na festa teatral em sua homenagem, dirigida por seu filho, o multiartista André Abujamra. A presença do Abu na minha vida e no teatro brasileiro me levou, como ator, a retornar ao palco de teatro depois de 26 anos.

Sim, durante todo esse tempo, me dividi entre a gestão pública e de projetos culturais, com a TV e o cinema. Mas aceitei o desafio e topei o convite. Fazer Hamleto, remontando uma experiência teatral magistral do Antônio Abujamra, junto à companhia teatral dele, FODIDOS PRIVILEGIADOS. Fodidos, pela ausência de recursos, e Privilegiados, por fazermos aquilo que gostamos.

Voltar ao palco depois de tanto tempo é como uma volta ao lar. O cheiro das cortinas, o som abafado dos passos no piso de madeira e a expectativa do público à espreita, lá fora... Tudo parece novo, mas, ao mesmo tempo, familiar. É nesse instante que o coração dispara e você sente a magia tomar conta — aquele instante em que o teatro volta a pulsar dentro de você. Um prazer visceral de estar em cena, algo que só quem experimenta o teatro ao vivo consegue descrever.

O teatro tem esse caráter único de troca instantânea — você sente a energia da plateia em tempo real. Cada respiração, cada risada contida ou aplauso é uma conversa sem palavras com aqueles que estão diante de você. Essa troca de energia é o que dá vida à cena, tornando cada apresentação única e irrepetível.

Afinal, o teatro exige uma atenção completa ao presente. No palco, não há “take dois”. Estar em cena é um ato de pura presença. Não há espaço para repetir ou corrigir, e isso traz uma intensidade que é quase viciante. Cada segundo exige uma entrega total, onde o passado se dissolve e o futuro não importa.

O palco é onde o ator encontra sua maior liberdade. Ali, o corpo e a voz se expandem em sintonia com a imaginação. E essa liberdade criativa, em meio ao olhar atento da plateia, é como um voo livre, mas profundamente consciente de cada movimento.

Estar de volta ao palco é um reencontro não só com o público, mas com uma parte de mim que ficou em pausa. É como vestir novamente uma roupa antiga que nunca perdeu o caimento. O prazer vem não só da performance, mas do simples fato de estar ali, no lugar onde sempre senti que pertenço.

Após o último aplauso, há um momento mágico. Sair de cena é como deixar para trás um peso e, ao mesmo tempo, levar consigo a leveza da entrega. A cura acontece nesse espaço entre o ato e o cotidiano, onde emoções foram liberadas e histórias contadas. É um renascimento, um estado de espírito renovado, que transforma não apenas o ator, mas também a energia que ele traz para o mundo fora do palco.

Quando as luzes do palco se apagam e o público se levanta, sinto que algo em mim se realinha. O teatro cura, não só quem assiste, mas quem vive nele. A cada gesto, a cada palavra, há uma renovação, um abraço invisível entre a alma do ator e o mundo. Voltar ao palco, depois de tantos anos foi como reencontrar uma antiga parte de mim que esperava pacientemente para ressurgir. E, agora, ao descer desse palco, deixo com ele um pedaço de alegria e levo comigo a certeza de que o teatro sempre será esse espaço onde a vida se reinventa e o espírito se fortalece.

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