O elo entre a procrastinação e o trauma infantil

Todos nós adiamos tarefas de vez em quando, mas o adiar crónico pode ser um obstáculo ao crescimento e evolução pessoal.

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"A procrastinação crónica na vida adulta impacta significativamente a saúde mental" Roman Biernacki/pexels
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A procrastinação, ato de adiar tarefas e decisões, é um fenómeno complexo que afeta milhões de pessoas em todo o mundo. Todos nós adiamos tarefas de vez em quando, mas o adiar crónico pode ser um obstáculo ao crescimento e evolução pessoal.

Na verdade, a procrastinação é mais do que apenas adiar uma tarefa. De acordo com as pesquisas, este comportamento envolve uma série de elementos, como a intenção de realizar a tarefa, a perceção da sua importância e a escolha consciente de adiá-la. A procrastinação é um comportamento complexo, com múltiplas causas e consequências.

Embora seja comum atribuirmos a procrastinação a falta de motivação ou organização, a pesquisa científica tem também demonstrado que ela pode ter raízes mais profundas, incluindo experiências traumáticas na infância.

Muitas vezes, adiar tarefas importantes não é apenas uma questão de falta de disciplina ou preguiça, mas sim um mecanismo de defesa, uma tentativa inconsciente de evitar a dor emocional associada a experiências traumáticas da infância. Se pensarmos um pouco, ao adiar tarefas, a pessoa cria uma espécie de muralha, afastando-se das situações que lhe causam ansiedade ou medo. É como se inconscientemente estivesse a dizer: "Se eu não fizer nada, nada de mal pode acontecer."

No entanto, evidente será, que esta estratégia, embora possa trazer alívio momentâneo, a longo prazo traz inevitavelmente mais sofrimento, pois as tarefas acumuladas vão-se transformando numa bola de neve, aumentando a sensação de impotência e frustração.

O ambiente em que vivemos também desempenha um papel crucial na manutenção da procrastinação. Um ambiente caótico, com muitas distrações e pouca estrutura, pode dificultar a concentração e aumentar a tentação de adiar as tarefas. Além disso, a falta de apoio social e a pressão por resultados podem intensificar a sensação de inadequação e contribuir para a procrastinação.

A busca pela perfeição é outro fator que pode contribuir para a procrastinação. Muitas pessoas adiam tarefas por medo de não as realizar da forma "correta" ou de serem julgadas pelos seus erros. Essa necessidade de ser perfeito pode gerar uma paralisia, impedindo que a pessoa comece a tarefa.

Agora tentemos recuar um pouco para melhor compreender como estes mecanismos se começam a edificar na infância. Sabemos que as experiências traumáticas na infância podem deixar marcas duradouras no nosso inconsciente e por consequência na nossa mente, influenciando a forma como percebemos o mundo e interagimos com ele. Nesta perspetiva a procrastinação pode ocorrer quando certos aspetos das memórias traumáticas que não foram totalmente processadas são inconscientemente ativadas por algum gatilho externo ou interno.

Quando uma criança vivencia situações de stress intenso e repetitivo, como abuso, negligência ou perdas significativas, o seu sistema nervoso terá uma maior probabilidade de fixar um funcionamento de base hipervigilante, funcionando como um radar sempre ligado constantemente à procura de sinais de perigo.

Essa hipervigilância pode levar a um sentimento constante de ameaça, o que, por sua vez, desencadeia comportamentos de evitamento. A procrastinação, nesse contexto, é uma forma de evitar situações que provocam ansiedade ou desconforto, como a realização de tarefas que exigem esforço ou que podem levar ao fracasso.

Para entender melhor estes mecanismos psicológicos que podem explicar a ligação entre trauma de infância e procrastinação deixo-lhe aqui alguns exemplos:

  • Medo do fracasso: Crianças que vivenciam críticas constantes ou são confrontadas com elevadas expectativas por parte dos seus cuidadores, podem desenvolver um medo intenso de falhar. A procrastinação pode ser uma forma de evitar a possibilidade de fracassar e a consequente vergonha ou rejeição.
  • Dificuldade em lidar com emoções: Experiências traumáticas podem dificultar a identificação e expressão de emoções, especialmente aquelas relacionadas à dor e à raiva. A procrastinação pode ser uma forma de evitar lidar com essas emoções desconfortáveis.
  • Sentimento de impotência: Crianças que se sentem impotentes diante de situações traumáticas podem internalizar essa sensação de falta de controlo. A procrastinação pode ser uma forma de manter o controlo sobre a própria vida, adiando tarefas que de algum modo parecem insuperáveis.
  • Perceção distorcida do tempo: O trauma pode distorcer a perceção do tempo, fazendo com que o futuro pareça incerto e ameaçador. A procrastinação pode ser uma forma de evitar pensar no futuro e nas suas possíveis dificuldades.

A procrastinação crónica na vida adulta impacta significativamente a saúde mental (ansiedade, depressão, stress e baixa autoestima), as relações interpessoais (dificuldade em cumprir compromissos e manter relacionamentos saudáveis), o desempenho profissional e a qualidade de vida, gerando ansiedade, depressão, dificuldade em cumprir compromissos e alcançar metas, além de sentimentos de frustração e insatisfação que diminuem significativamente a qualidade de vida.

A terapia pode ser uma ferramenta poderosa para ajudar pessoas que enfrentam dificuldades relacionadas a traumas de infância e procrastinação. A psicoterapia ajuda a identificar e exprimir as emoções reprimidas, permitindo que a pessoa lide com elas de forma mais saudável.

No processo terapêutico, os pensamentos negativos e distorcidos sobre si mesmo e sobre o mundo são modificados, ajudando a pessoa a desenvolver uma perspetiva mais realista e positiva. E acima de tudo ajuda a reconstruir a autoestima, que pode ter sido prejudicada por experiências traumáticas.

A conexão entre traumas de infância e procrastinação é complexa e multifacetada. É importante ressaltar que nem todas as pessoas que procrastinam tiveram experiências traumáticas na infância. No entanto, para aqueles que sofrem com os efeitos de traumas passados, a procrastinação pode ser um sintoma importante a ser abordado em terapia.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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