O Coração Ainda Bate. Jukebox Sentimental

Inês Meneses disserta sobre o amor e os amores, como se fossem canções.

O que é fica do amor, até quando o amor não ficou connosco? Às vezes, só uma canção. E essa canção pode ficar em nós para sempre.

Aqui estou, outra vez, a dar ordem aos pratos sujos na máquina e a arrumar o pensamento. Lembro-me de coisas tão díspares que vêm à minha memória sem consentimento. Devíamos ter escolha sobre aquilo que nos visita: as memórias, essas velhacas tentadoras, que quase nos levam a crer que tudo foi mais bonito lá atrás.

Enquanto disponho os pratos, que parecem um acordeão na máquina, a cabeça enche-se de pensamentos que parecem espuma. A espuma dos dias passados. O que fica de cada amor? Até quando não foi amor? Pensemos com clareza que raras vezes foi amor, que podia ter sido, mas o amor fica refém do modo condicional, um tempo que não se chegou a viver. E mesmo quando não foi amor, sobrou sempre alguma coisa: uma canção, uma frase estrangulada, um cheiro, um lugar da cidade que hoje diz AL – alojamento local… da dor, acrescento eu. Às vezes esboçamos um sorriso quando passamos por lá. Não há dor, só o tempo que a vida já nos acrescentou. A passagem do tempo dilui dores alojadas, enquanto nos oferece marcas novas no rosto. Não é irónico que seja uma novidade na pele a oferecer-nos a velhice?

Cheiros, canções, um sabor na boca, mesmo quando não nos lembramos como foram os beijos. O céu-da-boca é um porto de abrigo para beijos esquecidos. Nem tudo está na ponta da língua.

Canções, tantas. A minha jukebox sentimental. O dinheiro que tenho, trocado em moedas, não chegaria para por a tocar todas as canções que sobrevoaram ameaças de amor. Uma pessoa, uma canção. Às vezes, muito mais do que uma, sem que isso seja proporcional à dimensão do amor.

Antes de fechar a máquina da louça, lembro-me do rapaz com quem aprendi um truque na cozinha: um bocadinho de água no fundo do tacho para aquecer o que ficara de véspera. Esse amor pode ter acabado numa noite qualquer, de véspera, sem conhecer outros dias, mas aquele bocadinho de água sobra-me até hoje, de cada vez que aqueço um prato que me aconchega.

Os amores são sempre sobras, mesmo quando juramos que nos tiraram qualquer coisa: prazer, ingenuidade, alegria. Creio que tudo volta ao lugar. Numa sala também nos podemos sentar num sítio diferente e passamos a ver tudo de um novo ângulo, diferentes perspectivas. Com o amor é mais ou menos o mesmo: situemo-nos, já que não nos podemos sentar, num dia diferente. Deixemos o tempo avançar para podermos ter outra perspectiva. É curioso como vamos descobrir que sobrou qualquer coisa, muito para além da dor ou do sentimento que está forrado do avesso. Parece incómodo e já não é. Passou. Deu lugar a qualquer coisa. Talvez a canção persista.

Procurem agora em cada um dos vossos amores, acabados de véspera, uma sobra, um fundo de água que aqueça o que estava frio. Encontraremos sempre qualquer coisa, até quando nem percebemos que houve um fundo, de verdade.

O tempo gasto no amor, ou nos amores, merece a devida reciclagem. Retiremos a dor da equação, até porque precisamos desse lugar livre para o ocupar de novo. Dessa reciclagem resultará sempre uma descoberta qualquer. Uma pequena soma ao que somos. Se ficarmos pela canção não é nada mau. É como ver um álbum de família mas com os nossos amores. Façam a vossa playlist e vão ficar surpreendidos. Porque é que acham que coleccionei sempre tanta música?

É essencial retirar importância aos amores para consagrar O Amor. São coisas muito diferentes. A errância apura o mais valioso dos encontros. A determinada altura, acontece-nos. É a canção que não acaba.

O coração ainda bate.

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