O Coração Ainda Bate. O não-dito

E se a amizade não for para sempre? A crónica de Inês Meneses.

Tenho andado a pensar sobre aquilo que nos leva a desistir dos amigos. A amizade pode ser turbulenta como alguns voos: somos apanhados desprevenidos e vemo-nos sacudidos do nosso lugar. Do lugar que julgávamos ocupar no espaço dos outros. Afinal é sempre tudo uma questão de espaço. Andamos a lutar desde sempre por ele.

Quando aqui chegamos, ao momento em que somos capazes de desistir, as perguntas surgem muito mais claras do que as respostas: “Mas isto foi de repente?”, “Como é que isto (nos) aconteceu?”. Há sempre motivos, às vezes estão é muito escondidos: arrastaram-se durante anos, décadas. Um ligeiro desvio da meta de onde partimos e já não nos encontramos à chegada.

Os amigos podem ser terríveis quando começam a castigar-nos, porque, para eles, já não somos os mesmos (como podemos ser os mesmos de há 20 ou 30 anos?). Porque agora bebemos tinto e com eles éramos do branco. Porque fazemos coisas distintas do passado. Porque o reconhecimento não foi igual para todos. Os amigos têm essa particularidade de nos magoarem muito mais do que um amor, porque já lá estavam antes. Porque parecia que era para a vida toda. Porque atravessámos tempestades juntos e sempre sobrevivemos, independentemente de como ficámos. Ouvi e amparei amigos na penúria emocional e na outra. Também fui e voltei na amizade, mas, com esta maturidade com que a vida nos acena, não me dou ao luxo de abandonar quem se revela diferente, anos depois.

A ferida deixada numa amizade interrompida é muito pior do que um coração partido. O amor pode trazer um despeito e uma raiva que nos fazem lutar por qualquer coisa. A dor da amizade terminada é de um vazio sem tamanho, uma injustiça sem clamor.

Uma amizade não se termina por mensagem, é uma coisa que vai começando a ser construída lá atrás, ainda que de forma inconsciente. Só se torna visível com sintomas muito fortes: falta de respeito, de empatia e de qualquer coisa próxima da ingratidão – sendo que a gratidão não é a palavra adequada para a amizade, está implícita, não se verbaliza.

Quando o fim da amizade aparece à nossa frente já é um corpo que não podemos evitar: está diante dos nossos olhos a gritar qualquer coisa de forma muda. Não ouvimos mas percebemos que é o fim. Dói bastante. Dói-me perceber que alguns amigos se desviaram por diferenças que nos podiam fazer rir a todos. Gente mais próxima, na hora do conforto, dirá: “Mas seriam mesmo amigos?” Claro que foram amigos. Estivemos juntos em muitas frentes, apagámos fogos, incendiámos a loucura em conversas intermináveis, mas, se calhar, não resistimos. O tempo mudou-nos a vontade. Tirou-nos o à-vontade. Cá está um sintoma de que as coisas não iam bem: começámos a ser estranhamente formais e silenciosos, quando antes éramos da pândega, até em horas tristes.

Há limites estabelecidos para sermos amigos de alguém: coisas profundas e de carácter, coisas que nos devem colocar enquanto humanos no mesmo pódio. Vou falar do meu: não ser racista, homofóbico, xenófobo; não cair na tentação de prejudicar alguém; não mentir; não alimentar a pequena inveja que paira sobre todos nós. Ser amigo é também querer ser bom, sem catequizar ninguém, mas com aquele orgulho, que se disfarça, de ver no outro a vontade de dizer: “Somos amigos.” É grande e sentida esta declaração. Uma coisa de se levar ao peito.

Quando os amigos se desviam por coisas como não gostar do mesmo livro ou filme, da indumentária ou do carro, das férias num destino questionável ou do colar muito ostensivo, há, pelo menos, uma conclusão a tirar (e não é coisa pouca…): a amizade já tinha morrido há muito e ninguém teve vontade de avisar. Fica tudo dito no não-dito. É triste, até porque nunca pensámos que nos fosse acontecer, a nós. Mas acontece.

A vida costuma dar-nos a oportunidade de fazer novos amigos. Não há idade para isso.

Acumulo pontos nesse cupão.

O coração ainda bate.

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