Urso maior

Nunca como ali, deitada no banco de trás daquele Mercedes, ela lhe parecera tão bela, tão transparente, tão vulnerável. Queria emoldurá-la. Gastar a vista nela. Pobre coração palerma.

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Estaria a sonhar? Aquele momento parecia perfeito demais para ser verdade. A pele morna e delicada de Maria repousava no colo de Miguel, os seus dedos entrecruzados nos dele, dois corações a palpitar no mesmo compasso. Ali, dentro daquele carro, era como se nada mais existisse, só dois amantes entregues nos braços um do outro. Se aquele era um sonho, então não queria acordar. Podia passar a vida aninhado nela. Pelo menos até cair num novo abismo.

Nunca como ali, deitada no banco de trás daquele Mercedes, ela lhe parecera tão bela, tão transparente, tão vulnerável. Maria do Mar, a paisagem mais bonita. Queria emoldurá-la. Gastar a vista nela. Pobre coração palerma.

Enquanto enrolava os dedos no cabelo dourado de Maria e admirava o esplendor do seu corpo seminu, Miguel passou em revista aquele dia. Chegara a Odeceixe perto das nove da noite e, seguindo o plano traçado pelos dois, foram jantar a Aljezur, porque não queriam correr o risco de o pai dela descobrir que a amiga com quem ela se ia encontrar tinha afinal barba e um metro e noventa de altura. Depois do jantar, estiveram a divertir-se nas festas da vila, onde Maria, já um pouco tocada pela cerveja, demonstrou um domínio surpreendente do repertório de Quim Barreiros para uma beta de Cascais. De cada vez que a agarrava pela cintura, Miguel desejava arrancar-lhe a roupa ali mesmo, em frente de toda a gente, mas não estava pronto para passar a noite numa esquadra de polícia ou, pior ainda, acabar num daqueles grupos manhosos do Telegram. Colocou gelo naquela fervura descontrolada. Tinha esperado tanto para estar com ela. Podia suportar mais alguma tortura.

Regressaram a Odeceixe já depois das três da manhã. Miguel estacionou junto a uma falésia, dava para ouvir a melodia do mar a quebrar contra as rochas. Maria ensaiou uma conversa trivial. Quis saber porque é que ele não bebia álcool. “Não gosto de passar a noite a vomitar no hospital”, respondeu. “Bom, sabes que um dia vai saber-se que, antes de me beijares, estiveste a falar de vómitos”, riu-se ela. Depois pegou na mão esquerda dele e pousou-a sobre o seu peito. Sem hesitar, Miguel inclinou-se até ao rosto dela e beijou-a, tentando saciar um apetite antigo. As suas línguas moviam-se com uma urgência crescente, numa dança que os dois compreendiam sem nunca terem ensaiado, como se se devorassem um ao outro. Um beijo capaz de dizer tudo. Quente. Profundo. Voraz. Guloso. Inebriante. E sem sabor a vómito, graças a Deus!

“Não fiques convencido, mas não me recordo de alguma vez me terem beijado assim”, suspirou ela. “São beijos ao mesmo tempo firmes e gentis, têm a dose certa de língua.”

Passaram para o banco de trás do Mercedes. “Parecemos dois adolescentes”, brincou Maria, em transe, sem conseguir conter os suspiros cada vez que ele lhe beijava o pescoço e lhe mordiscava as orelhas. Miguel passou os dedos suavemente pelas alças do vestido dela, fazendo-o deslizar até à cintura. Depois, abriu-lhe o soutien preto, revelando o peito indecente de Maria. Começou a explorar com mãos firmes cada contorno daquela obra-prima. Percorreu com a boca cada centímetro daquele santuário, quase em devoção. Saboreou cada gemido suave que escapava por entre os lábios dela. E, por fim, deixou que a sua mão quente deslizasse lentamente até ao sexo dela. Maria, de olhos semicerrados, em êxtase, pedia-lhe que não parasse, até que por fim explodiu em ondas de prazer, como o mar que batia no fundo da arriba. “Acho que estávamos a precisar de libertar esta tensão”, segredou ao ouvido de Miguel. Em menos de nada, recuperaram o fôlego e continuaram fora do carro, debaixo de um céu de lantejoulas.

“Vamos procurar a Ursa Maior?”, sugeriu Maria. “Em miúda aprendi a fazê-lo com o meu pai.” Miguel olhou para ela e sorriu. “Pelo menos o urso maior já encontraste”, respondeu, desafiante.

Acabara de perceber a ironia daquele momento. Ali, junto daquela falésia, mergulhara por fim no abismo dela. Cometera o pecado capital: tinha-se deixado cair nela. Há muitos anos que não se sentia tão feliz, mas aquela felicidade tola não duraria muito. Mais cedo ou mais tarde, o caos de Maria iria arrastá-lo como um tsunami. Nada floresce num campo minado. Andava a enganar-se a si mesmo.

O bom sacana perdera-se, virara um palerma com olhos de labrador. Estava à deriva, cativo das vontades dela. Ia estampar-se ao comprido. Essa é que era essa. Se ao menos não fosse tão previsível. Adormeceu nesses pensamentos, embalado pelas ondas do mar, com a cabeça de Maria a repousar no seu peito. Acordaria para a realidade noutro dia.

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