Eles não são loucos: a aula de democracia dada por Fernando Henrique e Lula

Jornalista conta os bastidores da eleição de Lula em 2002 e da transição do governo, vistos da área econômica, em livro que será lançado neste sábado, 14 de setembro, na Livraria do Rio, em Lisboa.

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João Borges, em Lisboa, para o lançamento do livro Eles Não São Loucos, sobre a transição do governo de Fernando Henrique para Lula Jair Rattner
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O jornalista João Borges, 69 anos, esteve na maior parte de sua vida profissional nas redações brasileiras. Formado pela Universidade de Brasília (UnB), passou por Estadão, O Globo, Isto É, Band, Globonews, entre outros. Mas foi do outro lado do balcão, como assessor de imprensa do Banco Central, em um momento extremamente importante do Brasil, que ele colheu a maior parte das informações que resultaram no livro Eles Não São Loucos, que será lançado neste sábado, em Lisboa, pela Kotter Editorial​.

Numa posição privilegiada, Borges acompanhou as eleições vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, e, sobretudo, toda a transição da administração de Fernando Henrique Cardoso para o governo do primeiro trabalhador a chegar ao Palácio do Planalto. A maior parte dos fatos narrados pelo jornalista estava inédita até a publicação da obra.

Este é o segundo livro de Borges. O primeiro, Anatomia de um Desastre, escrito com os jornalistas econômicos Cláudia Safatle e Ribamar Oliveira, esmiuça os fatos que levaram o Brasil a uma das mais graves crises da história recente, que culminou com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. A seguir, os principais trechos da entrevista de Borges ao PÚBLICO Brasil.

Este livro tem a forma de uma grande reportagem. Como é que foi fazê-lo?
Foi um longo percurso. Tive a ideia de fazer esse livro no momento que estava vivendo a passagem de governo. Para mim, era como se estivesse assistindo a uma espécie de realidade submersa. Foi um momento muito especial da vida brasileira, porque tinha ali claramente o governo Fernando Henrique já desgastado, apesar de ser o presidente que tirou o Brasil da inflação, e todos os candidatos que, de alguma maneira, eram de oposição. Nenhum defendia o governo. Mas o que eu notava é que tinha muita coisa acontecendo abaixo do que o noticiário estava captando, tal a intensidade das coisas.

Isso aí acaba por ser um testemunho de bastidores.
Exatamente, eu vivi aquilo. E queria escrever o livro em 2003. Cheguei a conversar com Armínio Fraga, então presidente do Banco Central, e ele achou ótima a ideia, mas, de repente, falou assim, ‘João, os fatos estão muito vivos. Nossos interlocutores acabaram de assumir o poder’. Quando fiz o Anatomia de um Desastre, em 2018, comentei essa ideia com o editor. Ele disse: ‘Faz aqui uma proposta de dois ou três parágrafos’. Eu fiz e ele topou.

Foram mais de 100 entrevistas?
Foram. Com o Pedro Malan, ex-ministro da Fazenda, falei três vezes. Entrevistei o Armínio sei lá quantas vezes, o José Dirceu, importante liderança do PT, duas ou três. E o livro foi crescendo. Tem gente que nem é citada. À medida que fui apurando, pensei que soubesse muito, mas, na verdade, sabia pouco. E teve revelações surpreendentes. Não sei até que ponto fui bem-sucedido, mas pretendia conduzir o leitor para o ambiente dos fatos. Foi isso que tentei fazer. Mas, como reportagem, procurei aprofundar ao máximo as informações e trazer, de alguma maneira, aquilo como eu sentia naquele momento. Eu dei um tom confessional em algumas passagens, no sentido de que eu estava ali, eu vi, eu contei o que se passou.

A ideia, quando se lê o livro, é de que o Brasil é o país das crises. É isso?
É o país das crises. Algumas crises de países são inevitáveis, como são inevitáveis na nossa vida pessoal, mas nós brincamos com crises. Estamos cheios de crises que não precisam. E parece que o país, quando está indo para o abismo, ele se ajeita um pouco. Nós convivemos 20 anos com uma hiperinflação e me lembro muito bem que falar num programa de combate à inflação era visto como um sacrifício para o povo. Mas acontece que a inflação já era um sacrifício. É claro que é um processo da democracia brasileira. Foi saudável, mas será que precisava de tanta emoção? Poderia ter passado com mais sabedoria.

O centro do livro é a eleição do Lula, em 2002. Historicamente, existem vários estudos que dizem que há uma relação direta entre clima e mudanças políticas. Ouve a Pequena Idade do Gelo que provocou o fim da Idade Média, a erupção do vulcão na Islândia, em 1783, cuja nuvem de fumaça diminuiu a produção agrícola na Europa, o que desencadeou a Revolução Francesa. Dá para dizer que foi a seca de 2001, gerando o apagão da energia, que provocou a eleição do Lula?
Não tenha dúvida. Esse é ponto que passa meio desapercebido, parece que o tempo vai apagando certas coisas que são muito nítidas e importantes naquele momento. O Fernando Henrique venceu a eleição para o segundo mandato em outubro de 1998. Assumiu em janeiro de 1999 e houve a desvalorização do real. Parece que aquilo seria uma grande crise. A sensação naquele momento, e eu vivi muito intensamente isso como jornalista, parecia que o governo tinha acabado. Rapidamente, percebeu-se que não, tanto que teve uma troca de presidente de Banco Central e de regime cambial, que foi uma coisa muito turbulenta, e o país recuperou-se rapidamente. Não houve a recessão que todos temiam. O próprio Fernando Henrique temia. Então, em 2000, o país retomou o otimismo, cresceu acho que 4,3% e a inflação baixou. O país estava com uma alegria danada. A projeção do mercado financeiro e dos economistas em geral era de que o Brasil cresceria mais de 4% em 2001 e em 2002. Se um país tem um crescimento acumulado em três anos de praticamente 15%, seria lógico que o governo fizesse seu sucessor. Aquela crise de energia foi uma pancada, porque foi necessário abortar o crescimento na marra, para não deixar a inflação explodir. E gerou um desgaste terrível para o Fernando Henrique. Foi o gatilho para uma situação política eleitoral completamente diferente e que colocou o Lula e o PT no poder. Não estou dizendo que não chegaria lá, acho que a vocação do PT e do Lula era ganhar uma eleição. Se não fosse aquela, seria outra.

No livro, indica que vê a política por ciclos. Quais os sinais de mudança de ciclo?
As mudanças políticas ocorrem por esgotamento dos ciclos. E, às vezes, esse esgotamento não é captado pelas lideranças. É uma espécie de sentimento que está ali no coração das pessoas, mas não está explicitado. Por isso, que, de repente, há mudanças abruptas. Recordemos as manifestações de junho de 2013. Até hoje, não vi ninguém que pudesse dizer o que aconteceu. Não foi o aumento de 10, 20 centavos da passagem de ônibus ou do metrô. O que eu acho é que, tanto no Brasil quanto no mundo, surge uma espécie de mal-estar na sociedade. Não há lideranças referenciais.

Esse mal-estar é provocado ou genuíno? Existe um trabalho nesse sentido por parte de determinadas lideranças?
O que começa e o que provoca o quê? O que me parece é que a sociedade melhorou seus padrões de vida de uma maneira muito clara a partir da Segunda Guerra, seja na Europa, seja nos Estados Unidos. Esse ciclo também já não provoca a ascensão que vinha tendo. Então, esses ciclos terminam e não há clareza sobre o que vem depois. A sociedade fica perdida. Ela fica irada, irritadiça com esse desconforto. A sociedade tem passado por momentos de grande dificuldade, mas, desde que tenha liderança e um rumo, parece que ela suporta o sacrifício.

O livro fala de um tempo em que havia pactos políticos. E agora?
Esse ponto é importantíssimo, porque ali nós tivemos um padrão de relacionamento incrível. O Lula e as lideranças do PT da época castigaram muito o Fernando Henrique na campanha. Mas não na hora de tomar as decisões. Nisso, acho que meu livro surpreendeu muita gente. Nada acontece na história se não tiver o substrato, ou seja, que a coisa já esteja de alguma maneira presente na sociedade. Mas também não acontece se não tiver lideranças que se prestem a isso, que captem isso e levem isso para as suas populações da melhor maneira possível. Tem os líderes negativos que fazem o contrário, mas lideranças positivas que pensam no geral. A relação pessoal entre Lula e Fernando Henrique sempre foi boa. Na política, eles se bicavam muito. Eu narro o encontro deles de dezembro de 1998. Tomaram uísque para caramba, falaram de tudo. Então, o papel das lideranças ali foi muito importante. E por que pioramos tanto nesse aspecto? Creio que a marcha da história não é retilínea. Com as redes sociais, os diálogos políticos ficaram muito ásperos. A conversa já começa de uma maneira meio ofensiva. Naquele momento, acho que foi um período de ouro das relações políticas no Brasil.

Você fala de um tempo em que, dentro do Congresso brasileiro, era possível ultrapassar as barreiras, havia a ideia de que é necessário ter estabilidade fiscal, responsabilidade nas contas. Hoje em dia, parece que o Congresso brasileiro passa o tempo todo maquinando contra isso. Por quê?
Aí tem muita complicação para gente falar. Fernando Henrique foi eleito com o antigo PFL, de direita. Ele foi muito criticado no campo da esquerda, pois dizia que podia ganhar a eleição sozinho, mas não governar sozinho. Havia um quadro partidário em que o Fernando Henrique governou com PSDB, PFL e MDB. Agora, para governar, é precisa de quantos? São partidos que não são fiéis, que não são bem um partido. Essa é uma coisa muito complicada da política brasileira. Quando você perde o eixo das lideranças, é o eixo de poder que fica complicado.

O livro tem como título Eles não são loucos. Se eles não são, quem são os loucos?
Vou fazer outro livro chamado Quem são os loucos (risos). Esse título é muito interessante porque idealizei o livro e queria terminá-lo antes do ciclo Jair Bolsonaro. Porque, embora Bolsonaro não tivesse nada a ver com o que escrevi, mas, ao ser editado já no governo dele, aquilo que trago, dependendo de como eu abordo, tem uma leitura diferente se o livro tivesse saído cinco anos antes. Então, me deu um trabalho dos infernos encontrar esse título.

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