Morreu o crítico cultural Augusto M. Seabra

Grande melómano, grande cinéfilo, grande espectador de teatro, tinha 69 anos. A sua longa carreira de crítico da imprensa de referência extravasou o país, onde foi um dos fundadores do PÚBLICO.

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Augusto M. Seabra, fotografado em 2010 quando programava o festival DocLisboa Pedro Martinho
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O crítico cultural e programador Augusto M. Seabra morreu esta noite, em Lisboa, aos 69 anos. Autor de uma vasta obra enquanto cronista e comentador, apaixonado pelo cinema, pela música e pelo teatro, era crítico há 47 anos e foi um dos fundadores (e mentores) do PÚBLICO. Membro de júris de festivais de referência como os de Cannes ou San Sebastián, programador de festivais como o DocLisboa ou de ciclos em eventos internacionais, escreveu para os principais jornais do país — e do mundo — e era conhecido pelo seu conhecimento enciclopédico e pela sua prodigiosa memória.

Nascido a 9 de Agosto de 1955 no Luso, Augusto M. Seabra, que sofria há anos de vários problemas de saúde, morreu no Lar Santa Joana Princesa, em Lisboa, soube o PÚBLICO. Era licenciado em Sociologia pelo ISCTE — Instituto Universitário de Lisboa (então Instituto Superior de Ciências do Trabalho e Empresa), mas foi a via da escrita e da crítica que elegeu como área profissional. Ainda nos anos de estudante, militou politicamente à esquerda: pelo Verão Quente de 1975 estava com o Movimento de Esquerda Socialista. Em 1976, participou na campanha presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho. Um ano mais tarde, começava a colaborar como crítico em várias publicações.

Estreou-se n’A Luta (1977-79), prosseguiu no Diário de Notícias (1980-81), antes de iniciar uma longa relação com o semanário Expresso (1978-89), onde, segundo o próprio, fez parte “da equipa que lançou A Revista”. Seguir-se-ia a sua mais duradoura relação profissional, com o projecto do PÚBLICO, tendo sido “o coordenador do trabalho de elaboração do projecto, por acordo entre o grupo inicial de jornalistas e a Sonae – Tecnologias da Informação”, escreveu no seu mais recente currículo.

Colaborou com o PÚBLICO na fase inicial do jornal, entre 1990-94, depois no semanário (1995-96), e regressou ao PÚBLICO como crítico e colunista entre 1996 e 2006, saltando para o Diário de Notícias entre 2006 e 2007 e voltando a ser colunista do PÚBLICO em 2011, espaço que ocupou até aos seus últimos tempos no activo.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já reagiu à notícia da sua morte, postulando que "Augusto M. Seabra encarnou como poucos no Portugal contemporâneo a figura do crítico cultural".

"Acompanhou com zelo, conhecimento, cosmopolitismo e opiniões fortes a música erudita (clássica e contemporânea), o teatro, o cinema, e, com grande intensidade, as políticas culturais", lê-se numa nota no site da Presidência, em que Marcelo Rebelo de Sousa invoca "uma longuíssima amizade, cumplicidade e apoio", "mesmo nas situações mais polémicas ou controversas". Para o chefe de Estado, Seabra é "um dos últimos representantes de um tempo em que a crítica era determinante no espaço público".

Também a ministra da Cultura, Dalila Rodrigues, destacou numa nota de pesar enviada às redacções o seu "profundo pesar" pela morte de Augusto M. Seabra, "cujo trabalho é uma referência essencial em Portugal. A qualidade e a profundidade dos seus conhecimentos e do seu pensamento crítico sobre a cultura, entendida em todas as suas dimensões, reflectem-se nos textos que ao longo das últimas décadas publicou na imprensa", escreve a ministra.

Do Frágil à polémica

Augusto M. Seabra foi uma figura da cena cultural e nocturna lisboeta do pós-25 de Abril, algo que enformava a sua vida pessoal e a sua prática profissional. Em 2018, quando da morte de Manuel Reis, dinamizador cultural indissociável da Lisboa dos anos 1980 e da capital cosmopolita em que se transformaria nas quatro décadas seguintes, o colunista descrevia como um bar que aquele abriu em 1982 lhe suscitara inicialmente “alguma irritação”. Era o Frágil, epicentro das trocas informais da cultura de um país que então ainda não cumprira sequer dez anos sem ditadura.

Numa festa de passagem de ano (1983-84), tudo mudou. “O que verdadeiramente distinguia o Frágil era que, apesar da exiguidade, tinha duas salas bem distintas, uma de discoteca, outra, com mesas, de conversa. E para quem não viveu esses anos deve ser impossível de imaginar que um bar foi também um espaço de discussão intelectual absolutamente marcante — já nada assim existe.”

Foi ali, explica na crónica de tributo a Manuel Reis, que Augusto M. Seabra construiu amizades e relações que seriam também profissionais com o artista plástico Julião Sarmento ou o arquitecto Manuel Graça Dias, cineastas como Joaquim Leitão, Edgar Pêra ou Manuel Mozos, “mas sobretudo, sobretudo, passava horas e horas em conversas com o Zé Fonte, o Al Berto e o Pedro Cabrita Reis”. Faria parte de filmes de Pêra (O Espectador Espantado, 2016), ou de Joaquim Sapinho (Julião Sarmento, 1994).

Contador de histórias, polémico e hiperbólico, explicava nesse texto cheio de figuras entretanto já desaparecidas que tanto ia sozinho ao Frágil quanto como parte do “bando dos quatro” — “a Clara Ferreira Alves, o Miguel Esteves Cardoso e o Alexandre Melo, ou seja, gente do Expresso – A Revista. E de facto houve nesses anos 80 um eixo entre o Frágil e o Expresso – A Revista (gene do futuro PÚBLICO)”.

Os cruzamentos entre a vida e a carreira de Augusto M. Seabra não ficam por aqui. Nem os diferendos. Um dos mais recentes ocorreu em 2016, e terminou com o então ministro da Cultura, João Soares (que assim terminou o seu mandato), a prometer, num post na rede social Facebook, “salutares bofetadas” a Seabra e ao também já falecido Vasco Pulido Valente. Antes, houve aproximações e distanciamentos com figuras como o encenador Jorge Silva Melo e críticas cruas a vários titulares da pasta da Cultura — apelidou Isabel Pires de Lima de “parola incompetente” (2007) e o seu sucessor José António Pinto Ribeiro de “inexistência como ministro” (2009), em textos publicados na Arte Capital.

O mais recente debate cultural em que se envolveu foi o da polémica escolha da representação portuguesa na Bienal de Veneza em 2021, que recaiu em Isadora Neves Marques em detrimento de Grada Kilomba.

Um currículo e um colorido

Em 2021, quando a sua saúde já declinava, a Cinemateca Portuguesa deu a Augusto M. Seabra uma Carta Branca: o crítico e programador seleccionou então 21 filmes, num ciclo que sublinhava o seu contributo também como divulgador de cinema.

“AMS (as iniciais nas notas de cinema que estão no passado de muitos de nós...), Augusto M. Seabra, como nas crónicas dos festivais que anunciavam as descobertas em intermináveis folhas de fax que serpenteavam pela redacção deste jornal vindas de Cannes ou de Veneza (sim, há muito, muito tempo...), passou-nos filmes”, escrevia o crítico do PÚBLICO Vasco Câmara, evocando as memórias do trabalho com este fundador do diário. Dois marcos essenciais desse papel de Seabra como "passador" de cinema: a descoberta da Nova Vaga de Hong Kong e os seus dias como jurado do Festival de Cannes em 1993.

No seu currículo, laboriosamente lavrado pelo próprio, nem é dos elementos que mais destaca. Deixa para o fim ter integrado o painel de críticos de todo o mundo convidados pela revista Sight & Sound para escolherem os melhores filmes de sempre (em 2012) e dos melhores documentários de sempre (em 2015). Elenca primeiro a sua cobertura dos principais festivais internacionais de música (Salzburgo, Bayreuth, Glyndebourne, Aix-en-Provence ou Pesaro), e de cinema (Cannes, Veneza, Berlim, Locarno e Roterdão). Entrevistou os grandes nomes: Manoel de Oliveira, José Saramago, Pierre Boulez, Luigi Nono, Bob Wilson, Luca Ronconi, Patrice Chéreau, Peter Stein, Peter Handke, Martin Scorsese, Joseph Mankiewicz, Gabriel Figueiroa, Krystof Kieslowski, Wim Wenders, Francis Ford Coppola, Clint Eastwood, Emir Kusturica, Abbas Kiarostami, Peter Greenaway, Mike Leigh, David Cronenberg, Jordi Savall, Cecilia Bartoli ou Nanni Moretti.

Num texto publicado no seu site, a Cinemateca Portuguesa, recorda-o como "um dos críticos mais activos na divulgação [em Portugal] dos cinemas das várias regiões da Ásia, incluindo China continental, Japão, Hong Kong, Taiwan, Filipinas ou Índia, e mais tarde também do Irão (tendo sido, certamente, dos primeiros a chamar a atenção para Abbas Kiarostami)", sublinhando o modo como sempre procurou "conciliar a atenção à vertente popular desta arte, o legado das épocas clássicas (...) com a descoberta e defesa das cinematografias ditas 'periféricas', fora do eixo Europa/América".

"Com frequência, os seus textos ultrapassaram em muito o domínio estrito da análise de obras ou espectáculos, transformando-se em reflexões continuadas sobre o papel das instituições e da política cultural no nosso país. A esse outro nível, a sua intervenção foi mais uma vez feita de conhecimento, memória, ponto de vista, e, o que não é nada despiciendo, raro espírito de independência, nunca poupando a priori quaisquer entidades, grupos ou instituições disso não se excluindo a Cinemateca", refere aquela instituição.

Quando se fala em Augusto M. Seabra como divulgador, é também porque escreveu sobre o cinema português no diário francês Libération, no italiano La Stampa, no espanhol El País ou no britânico The Guardian. Trabalhou na RTP tanto na frente musical quanto cinematográfica, como produtor executivo, assessor ou co-autor de magazines e documentários. Numa entrevista à Antena 2 em 2002, aceitava-se como divulgador da música contemporânea e da música antiga, considerando-as “complementares”.

Como programador, elencam-se ciclos dedicados a Hans-Jürgen Syberberg (1980), Marguerite Duras (1981) e Raul Ruiz (1982) para o Centro Nacional de Cultura, o ciclo Cinema Positivo – cinema e sida em 1995, os ciclos de cinema dos Festivais Extremos do Mundo (2000), Europa (2002), Comunidade (2003), 3xHHH – Hou Hsiao-Hsien (2007), entre outros, da Culturgest. A relação com o Doclisboa era estreita: programou retrospectivas como as dedicadas a Jonas Mekas (2009), Marcel Ophuls (2010) e Harun Farocki (2011). Era programador associado do festival e foi seu director da programação em 2010 e co-director em 2014.

O festival recorda-o agora como "um dos fundos vitais do Doclisboa" "mesmo anos depois de decidir que era tempo de sair porque não se queria 'eternizar', era assim que dizia" —, a cuja equipa "ensinou (...) as alegrias de discutir filmes com o pensamento inteiro": "Levar a pele a jogo, pôr o nosso mundo todo em cima de uma mesa partilhada e deixar que a discussão nos oferecesse a forma final do nosso trabalho. Tinha a generosidade de nos enfrentar e desafiar, acompanhando-nos nas delícias de descobrir que programar filmes é, antes de tudo, uma actividade de rigor e prazer profundo", diz o comunicado do Doclisboa enviado às redacções esta tarde.

Nos palcos, foi co-autor (com Jorge Listopad) de uma nova versão cénica de As Guerras de Alecrim e Manjerona e de O Judeu, ambas de António José da Silva e apresentadas no Teatro Nacional de São Carlos (1978); e com João Canijo da dramaturgia para uma leitura cénica de Medeia de Christa Wolf (1996). Na dança, até numa performance de Vera Mantero participou, no festival Alkantara de 2006.

Mas deste rol de títulos e contributos falta o colorido, o humano. Os longos telefonemas quando deixou de se deslocar com tanta facilidade mas continuava a querer saber de tudo, as incompatibilizações com meio mundo cultural pelas suas críticas acutilantes, por vezes ferozes, a vontade insaciável, apesar das limitações físicas, de escrever sobre uma ópera, uma peça de teatro, uma série de televisão, um filme. Sobre Whitney Houston ou Wolfgang Amadeus Mozart.

Alguma dessa memória está com os seus colegas deste e outros jornais, dos quais sempre recusou vínculos contratuais; outra estará no seu espólio documental e cinematográfico, doado em 2021 a instituições como a Cinemateca, a Biblioteca Nacional, a Escola Superior de Música de Lisboa, o Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, a Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, a Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, e a Câmara Municipal de Lisboa.

Notícia actualizada com as reacções da Cinemateca Portuguesa e do Doclisboa

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