O crítico prodigioso

Foi um crítico em constante evolução e actualização, informado como poucos, apaixonado pela sua “missão” sem procurar ser agradável, obediente apenas ao que a cabeça lhe ditava.

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Foi muito antes do PÚBLICO que conheci o Augusto. Eu tinha acabado de entrar nos quadros do Expresso e ele era já, aí, uma das figuras-chave de A Revista, que ajudou a criar e a moldar com Vicente Jorge Silva. Isto num tempo em que o jornalismo, em particular o cultural, era uma coisa quase de loucos (como alguns, aterrados, o viam de fora), mas francamente criativa e inspiradora. Talvez por influência da sociologia (área onde se licenciou), o Augusto não via num filme apenas um filme ou numa ópera apenas uma ópera: tudo, ou quase tudo, era para ele pretexto para criar um “dossier”, uma viagem entre a crítica e o ensaio, atravessando as turbulências da História. A sua fixação em arquitectar trabalhos de uma abrangência quase definitiva (ambição partilhada por Vicente) deixou impressas na então revista do Expresso páginas ainda hoje memoráveis. E essa ambição transferiu-a para o PÚBLICO, do qual foi um dos fundadores, coordenando com fervor o texto que fixava os objectivos do projecto.

O Augusto, que ora assinava Augusto M. Seabra ou apenas A.M.S. (só depois lhe descobri o nome completo, Augusto Manuel Seabra Dias), seguiu com nervosismo e inquietação os primeiros passos do jornal, ainda no seu embrião, trabalhou no moroso mas entusiasmante processo de selecção dos primeiros estagiários, e, quando chegou a altura, recusou qualquer cargo directivo. Colaborador, sempre. Para melhor ver de fora, criticar ou até mesmo explodir em acessos de fúria quando algo, no seu entender, passava das marcas.

Foto
Augusto M. Seabra em 1990 RUI GAGEIRO

Ao longo dos anos, fomos muitas vezes trocando ideias, projectos, elucubrações. Com amizade, mas discordando sempre que necessário. Viveu momentos eufóricos, outros muito difíceis (como os da dependência do álcool, da qual se livraria de forma dolorosa mas definitiva), mas a cada queda parecia suceder-se um renascimento. Nunca conheci ninguém com tamanha memória para datas, lugares, acontecimentos, livros, filmes, o que fosse. Lembro-me, ainda nos tempos do Expresso, de o ver, deitado, num estado de semiconsciência, a ditar um texto que, depois de lido, parecia ter sido escrito por alguém rodeado de livros e absolutamente desperto. Um prodígio só possível para quem, como ele, era um leitor compulsivo, dominando com fluência não só o português como o inglês, o francês e o italiano, interessado pelos mais variados temas, que não se cingiam ao cinema, ao teatro e à música mas iam muito mais além, não conhecendo fronteiras. Por entre amuos, crises, caídas, recaídas, excitações, o Augusto percorreu festivais, dirigiu outros, esgrimiu ideias, acendeu polémicas. O seu interesse e empenho em ver muitos filmes em primeira mão deu até origem (nos tempos do Expresso) a uma piada que só lhe poderia servir de elogio: “m.seabrar”, ou “enseabrar”, um filme era vê-lo antes de todos os outros.

O que o Augusto deixou escrito, por entre entrevistas, crónicas, críticas, ensaios e conferências, preencheria muitos livros. Infelizmente, a tarefa de recolha de entrevistas a que ele deitou ombros a dada altura para editar em livro (e na qual o ajudei como pude) não teve sequência. E a lista era bem longa, de Manoel de Oliveira, que ele particularmente estimava, a Hans Jürgen Syberberg, passando por Boulez, Mankiewicz, Coppola, Clint Eastwood, Kusturica, Wenders e tantos, tantos outros.

Foi duro ver como, nos últimos tempos, por agravadas debilidades físicas, o corpo já não lhe respondia às exigências do cérebro, este sempre atento às notícias e aos óbitos (que, fossem de alguém próximo, como Oliveira, Jorge Silva Melo ou António Mega Ferreira, ou distante, como Krzysztof Penderecki, ele lamentava como perdas familiares). Agora que ele nos morreu, e que tudo o que escreveu se encontra disperso, como disperso (ainda que bem entregue a várias instituições) está o imenso acervo (hoje espólio) que foi coleccionando, faz-nos bem voltar a lê-lo, para reencontrar na sua escrita um crítico em constante evolução e actualização, informado como poucos, apaixonado pela sua “missão” sem procurar ser agradável, obediente apenas ao que a cabeça lhe ditava. A forma desajeitada como foi gerindo dissabores, pessoais e físicos, não apagará nunca o essencial da sua obra: a de um crítico prodigioso, brilhante muito para além do seu tempo.

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