Só o Augusto

Estou-lhe grata pelo que me fez ver e ouvir: o trabalho de um crítico é esse. O Augusto era absolutamente intransigente na sua opinião, às vezes demasiado. Mas são imprescindíveis os intransigentes.

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O novo mundo da escrita para ser lida em scroll rápido não era o seu. Não mudou, não se adaptou, não se acomodou.

Não sou uma leitora de crítica cinematográfica, mas muitas vezes li o Augusto M. Seabra. Por sua causa, por causa dos seus textos, tive, muitas vezes, vontade de ir ver filmes de que nunca tinha ouvido falar, de ouvir música que não conhecia, intérpretes, maestros. Vi e ouvi e fiquei grata, e por sorte não me falhou ter-lhe agradecido por isso. Só por piada, misturada com alguma vaidade, conto que fui eu quem lhe disse para para ir ver um filme de um desconhecido chamado Wong Kar-wai que ainda só circulava nos festivais pequenos pelo mundo. Estou mesmo grata ao Augusto pelo que me fez ver e ouvir. O trabalho de um crítico é esse: partilhar, ajudar a perceber, fazer saber que existe. O Augusto era absolutamente intransigente na sua opinião, às vezes até demasiado, mas ele era assim, e são, talvez, imprescindíveis os intransigentes.

Conhecemo-nos em Itália pela mão de um cineasta italiano amigo dos dois.

Nunca me dei com críticos de cinema, o Augusto foi o único crítico que esteve em minha casa, e de um modo geral não para falar de coisas “importantíssimas", mas para ver futebol.

Esse hábito de os críticos se darem com os artistas, de trocarem ideias sobre o mundo, sobre a arte, sobre política, sobre política cultural, não existe em Portugal, mas o Augusto estava bem entre os criadores, afinal somos interessados nas mesmas coisas. Podia estar a beber um copo com um artista, e no dia seguinte escrever duramente sobre um seu trabalho, o que nem sempre era bem recebido, mas isso era o Augusto, e ainda bem.

Para mim o Augusto faz parte de um mundo que já não existe.

Para quem não é do cinema talvez isto pouco importe, mas eu associo o Augusto ao tempo em que os festivais de cinema pequenos, pelo mundo, eram realmente pequenos, onde podíamos encontrar as pessoas com quem descobríamos ter afinidades, fazer amigos. Nada como esta confusão competitiva que é só correria e não dá espaço para ver nada nem conhecer ninguém.

Não sei bem por que magia, mas muitas vezes olhava-se para uma mesa de jantar onde só estavam realizadoras (quase nenhuma) e realizadores, e lá estava, entre nós, sentado à mesa, o Augusto. Mais nenhum crítico, só o Augusto.

Vou ter saudades. E mesmo que não se dêem conta, vai fazer falta a todos.

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