Acha mesmo que tatuar é só tatuar?

A magia de tatuar cores e vidas constitui um ofício que foi sobretudo desempenhado por homens no passado e onde as mulheres demoraram a ser vistas com igual competência e diferenciado dom.

Foto
"Tatuar é arte, magia, psicologia, amor, bondade, compaixão" Cottonbro studio/pexels
Ouça este artigo
00:00
03:11

Ao telefone, Sofia especialista em fine line, ouve com atenção o que a cliente do outro lado da linha lhe pede e vai tirando notas. “Eu queria um leão e flores, ou talvez uma águia, mas o objetivo era simbolizar uma perda.” Para uma outra cliente, sentada no sofá, a paciência para escutar curiosamente o telefonema perdeu-se aos primeiros segundos, mas Sofia, parecia ter todo o tempo do mundo e com regozijada serenidade ouvia e anotava. “Eu levo-lhe alguns exemplos que tirei da net”, encerrou a conversa, já com hora marcada, quem tinha ligado.

Sofia pegou no tablet e começou a desenhar, sentada no sofá de casa, aproveitou a hora de almoço para ansiosamente dar início a mais um projeto. Fez dez desenhos diferentes, enquanto pensava na cliente, nas fotografias que aquela tinha partilhado e principalmente no que tinha verbalizado. Não sabia ao certo que tipo de perda estava a tentar ilustrar, mas seguiu o instinto. Sexta-feira, às 11h da manhã, o espanta-espíritos deu o sinal de que Vanessa tinha chegado. “Nervosa?”, perguntou Sofia, conduzindo-a à sala onde a magia acontece. O leão, que era afinal uma leoa com flores, tinha o propósito de camuflar uma cicatriz emocional. Era uma perda, mas sobretudo uma libertação. Sofia esteve durante quatro horas a tatuar e a ouvir Vanessa falar de como se tinha afundado num relacionamento tóxico e abusivo, entretanto terminado.

A magia de tatuar cores e vidas constitui um ofício que foi sobretudo desempenhado por homens no passado e onde as mulheres demoraram a ser vistas com igual competência e diferenciado dom. Sofia estudou Desenho na Faculdade de Belas Artes, no Porto, e assim como a maioria das tatuadoras e tatuadores da sua geração sabe que a profissão que escolheu ainda é alvo de preconceito, como se se tratasse de uma brincadeira em part-time. Mas não é um hobby e sim o amor e sustento de vida, até porque a tatuadora ainda engole em seco ao recordar o impacto da pandemia, altura em que ponderou não voltar a tatuar.

Porém, está-lhe no sangue o dom de quase abdicar da cópia do desenho transposta para a pele. Vai pintando e desenhando na pele como se de uma tela se tratasse, esquecendo-se do tempo. É obsessiva com a perfeição das linhas e a leoa no meio de hibiscos tem de encher as medidas da cliente, a quem pede para se erguer devagar depois de várias horas deitada. É nesse momento que sente um frio na barriga. E se ela não gostar? “E se eu não tiver cumprido com o desenho e as cores que ela queria?” Estava melhor do que algum dia tinha imaginado e as duas abraçam-se comovidas, frente ao espelho, numa sala decorada em tons claros e limpos, aromatizados pelo perfume de um chá oferecido.

Tatuar é arte, magia, psicologia, amor, bondade, compaixão. Os cabelos negros e as caveiras impressas na pele não dizem nada do percurso que começou aos 26 anos com a primeira tatuagem feita e imperfeita nela própria. Não arriscou noutra cobaia quando as mãos ainda lhe tremiam e a perceção da profundidade da agulha a confundia. A arte de tatuar evoluiu tanto como o olhar sobre ela mesma, mas ainda assim, Sofia tem de provar todos os dias que o seu trabalho é diferente, é fino, elegante e que cada flor demora uma hora a ser sonhada no sofá lá de casa, antes de ir dormir, já de madrugada.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 1 comentários