Ponto a ponto: tatuar como dantes, sem pressa e com menos dor
Cada linha destas tatuagens é feita ponto a ponto, só com o artista a segurar na agulha. O trabalho é minucioso, demora mais tempo, mas quem as faz diz que é menos doloroso e mais meditativo. Em Portugal, não há muitos tatuadores dedicados à técnica arcaica.
Estamos debruçados no antebraço de Johnny Corvo. Um olhar destreinado — perguntámos uns segundos antes — consegue distinguir tatuagens feitas com auxílio de uma máquina das que são feitas só com agulha e tinta? Yauhen Kavalionak, o verdadeiro nome do artista de 26 anos, arregaça as mangas e espera pela resposta.
O desafio foi lançado na Monster’s Family, a loja de tatuagens no Porto onde o tatuador trabalha, e não está a correr muito bem para o nosso lado. Naquele caso, olhando para as linhas pretas que se espraiam por toda a pele, não se consegue perceber quais foram as tatuagens desenhadas ponto a ponto, as chamadas handpoked – livremente traduzido para “picadas à mão” e, por isso, feitas a segurar directamente na agulha, sem recorrer à máquina que é normalmente usada para perfurar a pele.
“Uma das melhores tatuagens que eu vi foi numa enciclopédia sobre tatuagens prisionais dos anos 80, em França”, garante. “Era uma mulher desenhada no peito de um homem, feita em realismo, quase de certeza só com um alfinete.”
Johnny Corvo não é grande admirador de realismo e nunca experimentou, nem aconselha, avisa, fazer “estas tatuagens em condições domésticas, sem materiais esterilizados”. Mas garante que quando são bem feitas, com um profissional de confiança, o “resultado é uma identidade muito própria”. E, como “são menos perfurações, não massacra tanto a pele”, e são normalmente “menos dolorosas” e “cicatrizam mais rápido”, ao contrário do que os clientes, a quem muitas vezes propõe o método, inicialmente pensam.
Da parte do tatuador, acredita, “como o processo é mais lento e se sente cada picadela, o controlo é maior”. Mas o tempo é também o motivo para Corvo não aceitar, por exemplo, “fazer umas costas inteiras em handpoke em linha fina”. “Tecnicamente dá para fazer qualquer desenho, mas não faço trabalhos muito grandes porque iriam ficar muito caros.”
O artista não adianta valores, até porque são calculados caso a caso, mas deixa um exemplo: se forem tatuagens pequenas, que consiga terminar dentro de uma hora, o preço é mais ou menos igual. “No entanto, basta ser o dobro do tamanho e o preço vai triplicar, enquanto com a máquina talvez apenas duplicasse”.
Johnny tatuava apenas com a ajuda da máquina eléctrica até que, há cerca de dois anos, se começou a especializar em handpoke, uma técnica que acredita ser pouco conhecida em Portugal, ainda mais em comparação com outros países como o Reino Unido, Polónia ou Alemanha, enumera. Estava na Bielorrússia quando encontrou, pela primeira vez, alguém que dominava o estilo. Foi a primeira vez que lhe fizeram uma tatuagem, no meio de um pinhal, ri-se, e ficou “impressionado com o processo e o resultado”.
A falta de conhecimento da técnica, em Portugal, “pode estar ligada a algum tipo de preconceito”, devido ao método considerado “arcaico”, desconfia. “Antes até eu achava que era só feito em prisões, ou nas ruas, por miúdos que não têm dinheiro para máquinas mas querem muito ser tatuadores e compram agulhas para começar a experimentar.” “Mas há cidades em que vais na rua e em 20 pessoas para aí cinco são handpokers, tatuadores profissionais ou não.”
No Porto, onde faz a maior parte dos seus trabalhos, diz não conhecer mais nenhuma loja onde o cliente entre, peça uma tatuagem feita só com agulha, e do outro lado ouça um “sim, na boa”. “Conheço muitos que vão dizer ‘posso experimentar’”, ri-se, “alguns que já experimentaram, mas não alguém que faça isto normalmente”.
Quando uma tatuagem pode ser uma terapia
Agata Gonçalves, 30 anos, é uma das tatuadoras que começou há pouco tempo a experimentar tatuar ponto a ponto, depois de conhecer o trabalho de Corvo. No estúdio que partilha com outra jovem tatuadora, Patrícia Shim, Agataris, nome artístico, faz tatuagens com máquina por marcação. Há cerca de cinco meses que, de vez em quando, pousa a máquina e pega directamente na agulha — mas, para já, só para desenhar na sua pele e “imagens muito simples”. Mostra, por exemplo, uns espinhos que fez no joelho. “Leva mais tempo. Se com a máquina demorava cerca de dez minutos a acabar o trabalho, ponto a ponto demorei duas horas”, conta, mas “o processo é muito mais calmo”.
“As tatuagens de máquina é como andar de mota; handpoke é andar a pé”, compara Miguel Filipe, que tem um estúdio particular chamado Infinite Sun Handpoke Tattoo, nas Caxinas, em Vila do Conde.
Começou por usar o material que tinha disponível para praticar em si mesmo o que, no seu caso, como não tatuava antes, significava agulhas de acupunctura e tinta-da-china Pelikan. Quando começou a tatuar amigos, e depois amigos de amigos, passou a utilizar “materiais completamente seguros e vegan”. “Estas tatuagens têm um lado punk, mas um punk higiénico”, brinca. “Tem-se exactamente os mesmos cuidados que nas mais convencionais.”
Miguel acredita que passaria com distinção no desafio que nos foi proposto no início do texto. “O resultado final é diferente, consigo facilmente identificar as duas”, garante. Apesar de saber que, mesmo sem máquina, se conseguem obter linhas praticamente perfeitas, é precisamente a “não perfeição” e o “lado mais orgânico” das handpokes que destaca. “Gosto que seja um momento mais intimista, bastante silencioso e, assim, mais propício ao relaxamento.”
Descreve o processo como “um regresso às origens, quase arcaico, que vai buscar o primórdio da tatuagem”. E quem procura os seus trabalhos são “pessoas saturadas das tatuagens convencionais” que querem algo ligeiramente “mais tosco e menos robótico”. “Existem tatuagens mal feitas com handpoked, assim como existem tatuagens mal feitas com máquina”, remata. “Não deve ser visto como algo mal feito, mas só como mais uma técnica de inserir tinta na pele.”