Sven-Göran Eriksson (1948-2024), a saga de um verdadeiro gentleman

Antigo treinador do Benfica morreu aos 76 anos, depois de uma carreira que o levou aos quatro cantos do mundo, antes do regresso às origens para enfrentar uma doença terminal.

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Sven-Goran Eriksson orientou a selecção de Inglaterra entre 2001 e 2006 Michael Regan / ACTION IMAGES VIA REUTERS
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Sven-Göran Eriksson perdeu nesta segunda-feira a luta contra o cancro, despedindo-se da tribo do futebol nos seus próprios termos, ao extrair do último ano de vida o que de mais positivo havia para experienciar. Foi brindado com homenagens em Anfield, no Estádio da Luz, em Gotemburgo e em Génova, a par de tantas outras manifestações de admiração e respeito que ajudam a validar um antigo provérbio das gentes de Värmland, terra do treinador sueco: “Tudo se resolve… e se não se resolver, não importa.”

Aos 76 anos, depois de ter encaixado com o fair-play que lhe granjeou uma imagem de autêntico gentleman num mundo pejado de alçapões, Mr. Eriksson despediu-se com a garantia de que será recordado como um homem honesto, que tentou fazer o seu trabalho, conforme sugeriu na última conferência de imprensa do Mundial de 2006, em que a selecção de Inglaterra caiu nos quartos-de-final, frente a Portugal.

Depois, “Svennis” – como lhe chamava “Lasse”, o benjamim da família – regressou a casa e caiu num silêncio semelhante ao que agora se instala junto ao gelado Friken, uma espécie de lago privado que nos últimos meses o ajudou a reflectir sobre uma vida inteira dedicada ao futebol.

A notícia da morte do treinador das palestras de dois minutos é sempre um choque, não obstante o sueco ter revelado ao mundo, em Janeiro, que lhe restava cerca de um ano de vida. Durante uma corrida, Eriksson desmaiou e foi impelido a fazer exames. Além de um AVC, os exames revelaram uma sentença ainda mais cruel. Um cancro do pâncreas. Fatal.

Da padaria para o Benfica

De Eriksson, o jovem treinador sueco em que o Benfica apostou em 1982 para substituir o húngaro Lajos Baróti, poucos ignorarão um currículo de que constam 19 títulos, três internacionais e 16 em competições domésticas.

Só no Benfica foram três campeonatos, uma Taça de Portugal e uma Supertaça Cândido de Oliveira, sem esquecer as finais da Taça UEFA (com Anderlecht, 1982/83) e da Taça dos Campeões Europeus (com AC Milan, 1989/90).

Tudo depois de um início de carreira improvável na III Divisão sueca, ao serviço do Degerfors IF, de onde saltou para o semiprofissional IFK Gotemburgo para conquistar duas Taças da Suécia, um campeonato e uma impensável Taça UEFA, frente ao poderoso Hamburgo (HSV), precisamente a que lhe abriria as portas da Luz.

Entre Portugal e as Filipinas, onde em 2019 deu por encerrada a aventura da vida de treinador/dirigente, Eriksson levou o seu “revolucionário” 4x4x2 a Itália (Roma, Fiorentina, Sampdoria e Lazio), Inglaterra (selecção, Manchester City, Notts County e Leicester), México, Costa do Marfim, Tailândia, Emirados Árabes Unidos e China.

Na sala de troféus, a par da Taça UEFA e das conquistas no Benfica, cintilam uma Supertaça Europeia (Lazio), uma Taça das Taças (Sampdoria), um “scudetto” (Lazio), quatro Taças de Itália (Roma, Sampdoria e duas na Lazio), duas Supertaças de Itália (Lazio) e ainda a League Two (Notts County, como responsável máximo de um projecto falhado).

Eriksson conta, na primeira pessoa, esta viagem no livro Sven-Göran Eriksson, A Minha História – em que aborda episódios com jogadores, mulheres e ainda os fracassos financeiros que o levaram à beira da ruína.

Apesar de ter cursado Economia e trabalhado numa seguradora, Eriksson garante sempre ter tido uma relação desprendida no que dizia respeito ao dinheiro, pelo que (não) viu o consultor financeiro Samir Khan apropriar-se de metade da sua fortuna, tendo acabado por se declarar insolvente no processo ganho pelo treinador sueco, sem conseguir recuperar grande parte dos cerca de dez milhões de euros “desviados”.

“Roubou-me metade da fortuna. Aparentemente, tenho uma casa nos Barbados. Dizem-me que ao lado da do Wayne Rooney”, conta no livro que acaba com uma reflexão e um sentimento de tristeza: “Para onde foram os anos? Os meus filhos? Amigos? Mulheres? Tempo? Magoa olhar para trás.”

Durante mais de três décadas, a obsessão era outra: o futebol! Primeiro como atleta “pequeno e magricela”, banal, sem um talento especial para além de um decente pé direito, que lhe valeu um lugar a defesa-lateral numa equipa da II Divisão. Tudo consolidado pela força de vontade, empenho e dedicação. Insuficiente para garantir a subsistência, pelo que se candidatou à Escola Sueca de Desporto e Ciências da Saúde, acumulando mais tarde a carreira de jogador e professor de Educação Física.

Depois, como treinador precocemente lançado, após receber um telefonema do seu antigo técnico, Tord Grip, a convidá-lo para adjunto. E esse é mesmo o capítulo central da vida de Eriksson, com raízes na adolescência, quando, no Verão, enquanto aprendiz de padeiro na Nova Padaria de Torsby, conviveu com o dono e, simultaneamente, treinador das equipas seniores locais de futebol e de hóquei.

Durante o serviço, as conversas derivavam sempre para o futebol, com estratégias desenhadas no chão enfarinhado da padaria. Uma visão romântica que aos 27 anos ganhou contornos reais, quando aceitou o repto de Tord Grip.

Depois, mesmo sem licença de treinador, novo desafio: render Grip, que em 1977 recebera convite para trabalhar como adjunto na selecção principal da Suécia. Grip aconselhou os dirigentes do Degerfors a apostarem em Eriksson… e o resto é história, com a conquista do campeonato e o convite do IFK Gotemburgo.

Bella Italia com arrependimento

Seguir-se-ia o Benfica e o capítulo italiano, iniciado em Roma, no melhor campeonato da altura, após recusar o Barcelona. Eriksson não escondeu o arrependimento, embora tivesse cometido o mesmo erro um ano depois, ao recusar a proposta da Juventus, que levou Agneli a dizer-lhe que o via como um óptimo treinador, mas ignorava que fosse “um homem pouco inteligente”, ao ponto de lhe ter dado um inusitado “não”.

Ainda na Roma, com o AC Milão de Silvio Berlusconi a reclamar a hegemonia em Itália, o treinador sueco perdeu a oportunidade de assumir os rossoneri. Tudo porque, na reunião secreta com o magnata da comunicação, depois de discutidos os honorários, Berlusconi percebeu que teria de “roubar” o treinador ao senador Dino Viola, pois Eriksson ainda tinha contrato com a Roma.

As ambições políticas de Berlusconi falaram mais alto e Sven voltou a passar ao lado de um grande projecto. Facto compensado uma década mais tarde – depois de passagens por Fiorentina, de novo Benfica e Sampdoria –, pelos anos de Lazio, onde se tornou no “Il Mitico”, depois de ter recusado uma proposta do Bayern Munique.

O reinado de Inglaterra

Uma ligação interrompida pelo sonho de levar a selecção de Inglaterra ao topo do futebol mundial. Na Suécia, ainda adolescente, Eriksson herdou do pai a inexplicável paixão pelo futebol inglês e pelo Liverpool, em particular. Ainda hoje, o pai não perde um jogo dos "reds" na TV.

O que ninguém suspeitava era de que Sven viesse a converter-se no primeiro estrangeiro a assumir a selecção dos “três leões” e no primeiro a vencer os primeiros cinco jogos ao leme de Inglaterra, superando a marca de Walter Winterbottom.

Apesar dos resultados (em quase seis anos perdeu apenas três jogos oficiais, tirando as eliminações com Portugal, nos penáltis, no Euro 2004 e no Mundial 2006) e da goleada em Munique (1-5) à Alemanha, besta-negra dos ingleses, acabaria por ser despedido pela primeira vez na carreira em 2006, na sequência de uma armadilha com um falso xeque dos Emirados Árabes Unidos, numa maquinação de um tablóide sensacionalista. Até então (2001), os alemães apenas tinham perdido um jogo em casa, em Estugarda, frente a Portugal, e Inglaterra passara de 17.ª a quarta do ranking Mundial.

Nesse período, conheceu Roman Abramovich. A pedido do magnata russo, que pretendia comprar um clube da Rússia, aconselhou o CSKA de Moscovo, mas recusou proposta para assumir o cargo de treinador. A cena repetiu-se depois de o sueco lhe sugerir a compra do Chelsea, em detrimento do Tottenham. Não por vontade de Eriksson, que esteve na iminência de assinar contrato, mas por uma fuga de informação que levou a federação inglesa a intervir e a prolongar-lhe o vínculo até 2008.

Antes, logo após a chegada à selecção inglesa, na sequência do anúncio de “reforma” de Alex Ferguson, assinou mesmo contrato com o Manchester United, “rasgado” após o recuo de Ferguson, com quem manteve uma relação turbulenta enquanto foi seleccionador inglês.

Entre o legado e a fraude

Eriksson abriria novos capítulos: o mais entusiasmante no Manchester City, detido por Tahaksin Shinawatra, um ex-primeiro-ministro da Tailândia, que comprara o clube por 80 milhões de libras. Isto, depois de diversas abordagens da Ásia e Médio Oriente, do Qatar e até do Dínamo de Kiev.

Em Manchester, teve de lidar com políticos sem a mínima noção do fenómeno futebol. Acabou mal. Voltaria, depois, a ser seleccionador, primeiro do México e depois da Costa do Marfim (Mundial 2010).

Aliciante projecto de reabilitação do histórico Notts County, sustentado por um membro da família real do Bahrein, convenceu-o a suspender a carreira de treinador para ser o director-geral. Mas foi traído e vítima de fraude, com episódios rocambolescos à mistura, como uma viagem surrealista à Coreia do Norte. Nesse período, recusara um convite para ser o seleccionador da Suécia... Estava focado numa obra, num legado que não passava de um logro.

Teve tempo ainda para encerrar o reinado inglês no Leicester, também detido por um magnata tailandês. Depois, uma breve experiência em Banguecoque e nova missão no Dubai, para organizar o Al-Nasr, antes de voltar a assumir uma equipa, na China, onde foi desafiado a descobrir um clube para um investidor tailandês.

De Mandela a Alfred Nobel

Durante esse processo, acabou por treinar o Guangzhou, o Shanghai SIPG e o Shenzhen FC, antes de concluir mais de 40 anos de carreira, nas Filipinas. Anos em que conheceu algumas das figuras mais relevantes dos tempos contemporâneos, como o Papa João Paulo II, Nelson Mandela ou a rainha de Inglaterra, antes de regressar às origens.

Foi a casa que voltou para viver os últimos dias na propriedade comprada em 2001, onde nasceu e viveu Selma Lagerlöf, a primeira mulher a ganhar o Nobel da Literatura, em 1909, com a Saga de Gösta Berling, a história de um padre exonerado, um jovem brilhante, galante e sedutor, líder nato que conquista os corações de todas as mulheres... "Retrato" que podemos facilmente confundir com a história de Sven-Göran Eriksson.

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