Um castelo ou um buraco

Sinto necessidade de ser guiada pelo cientista para fora das minhas dúvidas. Preciso que alguém me aponte a alegria como um pai aponta os ninhos das cegonhas nos postes de electricidade.

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"Uma voz já bêbada quer filosofar e diz que somos todos hipóteses" Nathan Cowley/pexels
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Num jantar de Verão, à mesa, alguém ri, alguém suspira, alguém toca um instrumento. Há uma alternância quase mágica entre os assuntos importantes e a temperatura da água naquele dia. Se é que pode haver alguma coisa mais importante do que a temperatura. Provavelmente sim, mas o mais certo é que não tenhamos ainda descoberto o que mais importa. Somos bons a descobrir tudo excepto o que mais importa. Há silêncios e também algumas certezas.

À mesa estão crianças, adultos, velhos, um músico, um cientista. O cientista fala como um profeta. Ele diz que somos o legado de partículas em suspensão deixadas por erupções naturais ou artificiais. Fala-se de fungos, do universo, de átomos. Não há discordância no que não se entende.

Fala-se do ar, de como o ar não é mais do que o espaço entre as coisas.

Alguém pousa um tabuleiro na mesa: Eis o jantar.

Eu imagino alguém a trazer um tabuleiro e a dizer: Eis a tua vida. Eis aqui duas crianças, eis o teu corpo a competir com o tempo, uma casa, um rochedo para cravares os pés antes do mergulho, uma renda, os teus pais a serem avós, a meteorologia, as boleias, os poros, eis ali as pétalas, as viagens. Eis as memórias, se fores capaz de lembrar. Eis os segredos. Os segredos todos à mostra. Eis a maldade, eis os negócios. Eis as pessoas na esplanada da praia, eis este papel a voar, eis uma criança lambuzada de Solero. Eis os casais a jogar raquetes. Eis aqui a tua dor.

Sinto necessidade de ser guiada pelo cientista para fora das minhas dúvidas. Preciso que alguém me aponte a alegria como um pai aponta os ninhos das cegonhas nos postes de electricidade.

E, apesar de a conversa estar cada vez mais comprida, só penso na pergunta da minha filha na areia: Faço um castelo ou um buraco?

Uma Polaroid, a lua, séries de TV da infância, uma lagoa, os leques, um esforço para sentir menos. Um castelo.

Um Ben-U-Ron, insónias, um fantasma, a cidade vazia, suor nas costas, um esforço para sentir mais. Um buraco.

Uma voz já bêbada quer filosofar e diz que somos todos hipóteses. Hipóteses reunidas à volta de uma mesa, numa noite de Agosto. Torna-se difícil articular com precisão aquilo em que se acredita.

Penso em ti neste jantar de Verão, debaixo de uma buganvília imaginária.

A dor também é só o espaço entre as coisas.

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