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Joana Dionísio explora a memória colonial a partir do seu arquivo familiar

Em Tudo É Incómodo Quando a Terra TremeJoana Dionísio resgata do álbum de família fotografias de Moçambique da era colonial para colocar em tensão o passado e o presente, a memória e o esquecimento.

Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
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Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio

Quase 8 mil quilómetros separam Portugal de Moçambique. Mas o que significa a distância física quando se passa uma vida a ouvir falar de um lugar? O álbum de família da fotógrafa Joana Dionísio está repleto de imagens de Moçambique da era colonial. A sua avó, a sua tia e a sua mãe nasceram lá e, à semelhança de muitos descendentes de portugueses que por lá viviam, trocaram de morada após a proclamação de independência do país.

As fotografias do seu álbum de família, conta Joana ao P3, moldaram a sua percepção “sobre um espaço e um tempo” que não tinha vivido. “Elas sempre estiveram presentes no meu imaginário, enquanto cresci, e foi através delas que formei, internamente, a imagem de África.” No final do ano de 2017, a mãe de Joana resgatou da arrecadação um conjunto de cartas antigas, compiladas em dossiers verdes, que viriam a estar na génese do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme, que ganhou corpo nos anos seguintes e que foi vencedor, em 2024, do Prémio de Fotografia FNAC.

“As cartas tinham sido trocadas entre os meus familiares e os seus amigos”, conta. ”Datavam do período colonial e estendiam-se no tempo até poucos anos após o meu nascimento”, o início dos anos 1990. Ao ler as cartas, Joana Dionísio ficou imediatamente presa ao conteúdo. “Elas retratavam, no fundo, memórias com as quais eu tinha alguma conexão pessoal porque se referiam à história da minha família”, conta. “Apesar de as cartas não serem minhas, o que elas continham acabou por se tornar também parte das minhas próprias memórias.”

Soube imediatamente que “algo nasceria com base naquele material”. Transcreveu as cartas e começou a conjugá-las com as imagens do seu álbum de família. “E foi durante esse processo, e depois também através da partilha do trabalho com outras pessoas, que eu tive a consciência de que aquelas fotografias e cartas, memórias, não eram meramente relatos pessoais, eram muito mais do que isso.” As cartas, as fotografias, os relatos de época pertencem a uma outra esfera, a da memória colectiva. São peças de um puzzle que, na maioria das vezes, permanecem confinadas em baús, dentro de casa, afastadas do olhar público.

Foi numa das correspondências de George Agostinho da Silva, remetida à mãe e à tia, que Joana encontrou o título do projecto “Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme”. “Essa foi a primeira carta que eu li do maço de correspondência”, recorda. “A carta era mesmo dirigida à minha mãe e à minha tia, que eram, na altura, adolescentes. Nela, o professor tentava explicar-lhes o que estava a acontecer. Falava de tempos de mudança e comparava essa mudança, a independência de Moçambique, a um terramoto. Dizia que, embora fosse um período de desconforto, dele surgiria um novo equilíbrio.”

O terramoto em Moçambique fez tremer também a família da fotógrafa. “Por cá, a minha mãe e tia tiveram de adaptar-se a um novo país onde nunca tinham estado”, refere. “Um sentimento de desenraizamento instalou-se quando tiveram de vir abruptamente para Portugal.”

“Depois do contacto com as cartas, estive quase dois anos sem tocar no projecto”, recorda a fotógrafa portuense. Surgia, na sua mente, um conflito que requeria ponderação. E mais investigação. “Como é que eu podia respeitar estas memórias familiares sem perpetuar uma visão nostálgica e distorcida do passado?” Foi quando percebeu que o projecto se desenvolveria em torno dessa questão. “Seria uma reflexão, uma análise sobre o arquivo. Seria sobre o poder do arquivo fotográfico sobre a percepção de um determinado tempo e espaço.”

Joana Dionísio “pertence a uma geração da pós-memória”. Não viveu os acontecimentos descritos nas imagens, não experienciou os lugares e as condicionantes da vida num lugar colonizado. Começou por intervir sobre as imagens. Pintou-as, coseu partes do seu interior. “A tinta esconde, acabando por enaltecer algumas partes”, explica. “A linha repara ou une fragmentos.” Através das suas intervenções, conseguiu conferir às imagens de que dispunha uma unidade estética que seria difícil de alcançar. “Mas como introduzir as cartas?”, questionava-se. Abandonou, em parte, a intervenção física sobre os documentos fotográficos para adoptar uma nova abordagem: a criação de dípticos. Mas já lá vamos.

Em 2023, Joana teve oportunidade de visitar Maputo. “Não viajava até Moçambique desde a infância”, refere. No país, Joana produziu fotografias que tocavam a herança colonial que considerou importante incluir no projecto. Essas seriam combinadas com as fotografias do álbum de família, com imagens de arquivo público e fotografias que acabaria por produzir também em Portugal – estas últimas são “imagens mais simbólicas que remetem para o conteúdo das cartas”. Os dípticos que produziu surgem da necessidade de colocar em diálogo o presente e o passado, sem o romantizar. “A justaposição de duas imagens força a interpretação”, explica a fotógrafa de 31 anos. “Revela conexões que, à primeira vista, poderão não ser tão óbvias.” Encontrou nessa solução uma forma de “aprofundar a tensão entre o passado e o presente, a memória e o esquecimento”.

“No meu trabalho, procuro explorar a minha própria identidade, a memória, o tempo, as narrativas”, conclui. “Tento falar de algo que é universal a partir da minha própria experiência, dos meus próprios medos, ansiedades. Por isso gosto de explorar arquivo fotográfico.”

Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Fotografia do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Fotografia do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>. À direita, a carta que o professor Agostinho da Silva dirigiu à mãe e tia da fotógrafa aquando da independência de Moçambique de Portugal, em 1975
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme. À direita, a carta que o professor Agostinho da Silva dirigiu à mãe e tia da fotógrafa aquando da independência de Moçambique de Portugal, em 1975 ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
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Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Díptico do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Díptico do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio
Fotografia do projecto <i>Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme</i>
Fotografia do projecto Tudo É Incómodo Quando a Terra Treme ©Joana Dionísio