Paredes de Coura: em noite de guitarras, entoou-se o afro fado de Slow J
As principais paragens do segundo dia do festival minhoto, a decorrer até este sábado.
Esta quinta-feira, Paredes de Coura voltou a apresentar um cardápio composto por rock de diferentes linhagens, electrónica e hip-hop. A estreia em Portugal das icónicas Sleater-Kinney não vai, infelizmente, ficar na memória. Os protagonistas da noite foram os franceses L’Impératrice e o português Slow J.
Wednesday
A vocalista Karly Hartzman, dos Wednesday, é uma espécie de Aimee Mann mais sofrida, com olho de lince e desenvoltura poética para narrar histórias dos cantos mais obscuros, solitários e desencantados da América, do fervor religioso à epidemia de opiáceos. E domina essa nobre arte do punk de abrir a goela, turbinada por guitarras inflamadas e afiadas descendentes de Dinosaur Jr. e de Pavement, temperadas com o quente e frio dos Nirvana, com espaço para palmilhar o alt-country (porque, afinal de contas, estamos mesmo na América). Quando o mosh já estava em altas no palco secundário de Paredes de Coura, no início da noite, Hartzman pediu um momento de atenção para lembrar o genocídio em Gaza. “Somos de um país que alimenta este massacre com milhões de dólares em armamento.”
Sleater-Kinney
Adoraríamos escrever que foi memorável a estreia em Portugal de uma das melhores bandas de rock das últimas décadas, nascida no seio do movimento punk feminista riot grrrl. Só que não. O som da bateria abafou as vozes de Carrie Brownstein e Corin Tucker, e por vezes também as guitarras. Os teclados ocuparam demasiado espaço, e por vezes até estorvaram. Tucker parecia estar a fazer um frete, e só acordou a meio do concerto. A maioria do público não fazia ideia de quem estava a ver, o que contribuiu para arrefecer o momento. Mas nem tudo foi mau, porque Brownstein e Tucker não sabem ser más – sobretudo Brownstein, guitarrista magnífica, labareda, capaz de nos fazer acreditar que soltar o berro na guitarra é o segredo para não dar o berro na vida real. Ah, e houve aqueles clássicos que queríamos ouvir ao vivo desde a adolescência: Dig me out, Modern girl ou All hands on the bad one.
L’Impératrice
Há dois anos, Paredes de Coura rendeu-se à pop electrónica de membrana francesa dos L’Impératrice, e eles dizem que foi um dos melhores concertos da sua vida – parece que o amor, recíproco, ainda resiste. Recinto cheio, filas da frente e de trás com braços no ar, uma plateia que por uma hora se transformou numa discoteca, iluminada pela fluorescência prateada (e não só) vinda do palco. A banda francesa sabe fazer a festa, isso é inquestionável, mas tudo isto soa extremamente genérico: um sucedâneo de Daft Punk, baixos polposos, guitarras funky e sintetizadores intergalácticos quase sempre no mesmo calibre, com a vocalista Flore Benguigui a tentar sacar o jeito e o trejeito de Róisín Murphy nos Moloko, sem sucesso. Mais fogo-de-artifício do que música, mas o povo saiu feliz.
Protomartyr
Depois da electrónica festiva e despreocupada dos L’Impératrice, os Protomartyr estão cá para nos lembrar que o mundo está um bocado no lodo. A banda de Detroit varreu o palco secundário de Paredes de Coura com o seu pós-punk neurótico e constantemente a olhar o precipício. Joe Casey, uma espécie de Mark E. Smith mais sóbrio, com zero carisma mas com muita entrega, canta sobre a ascensão da extrema-direita, a violência policial, as guerras sem fim à vista, o peso dos dias. Há uma tensão que nunca arrefece, uma máquina rítmica que dardeja sem dó nem piedade.
Slow J
Slow J é hoje um dos músicos mais ouvidos em Portugal e Paredes de Coura não passou ao lado do acontecimento. Com as letras na ponta da língua, o público entoou várias canções, do mais recente Afro Fado ao disco de estreia, The Art of Slowing Down. “Tu, pensas na cor da pele como a capilar/ Nós vimos do futuro p'a lhes ensinar/ Essa é a razão do nosso som/ Combinações de cada raça e cada tom”, canta o rapper em CorDaPele. Slow J pode ser um letrista sem grande rasgo, mas a verdade é que consegue levar ao grande público, de forma sentida e sem barreiras intelectuais, assuntos que precisam de entrar em casa de todos os portugueses: a complexidade do que é isso de ser português, o racismo e as desigualdades sociais, um país de identidades plurais.
Com escola da vida e humildade, Slow J, filho de mãe portuguesa e pai angolano, entregou-nos com carinho a sua melancolia, introspecção e superação, num hip-hop driblado com kizomba, morna e electrónica – sem esquecer a guitarra portuguesa. "Aos anos que eu queria pisar este palco", partilhou no início do concerto. Depois de ter esgotado duas datas na Meo Arena, em Lisboa, esta foi uma noite para o rapper mais tarde recordar.