De inspecções degradantes à testosterona, como funcionam os testes de elegibilidade sexual desportiva?

Os casos das pugilistas Imane Khelif e Lin Yu-Ting reacenderam a questão de género nos Jogos Olímpicos, no meio de discursos de ódio e de uma batalha entre órgãos desportivos a que elas são alheias.

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Khelif tem gerado polémica por participar na prova de boxe feminina. Quais são os critérios de elegibilidade? Peter Cziborra / REUTERS
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A 1 de Agosto, Imane Khelif, pugilista argelina, defrontou Angela Carini, italiana. Aquilo que poderia ser apenas a batalha de oitavos-de-final de boxe feminino, da categoria de -66 quilos, nos Jogos Olímpicos de 2024, tornou-se um debate político e social fervoroso, com contornos transfóbicos e racistas.

Angela Carini, depois de 46 segundos de combate, desistiu, lavada em lágrimas e a gritar "Não é justo! Não é justo!". O que é que não era justo para Carini? A presença de Khelif, que em frente aos jornalistas, e depois de vários golpes desferidos fora do ringue, teve de gritar: "Sou mulher!"

A elegibilidade da atleta argelina em provas femininas tem sido constantemente questionada, mas pela IBA (a Federação Internacional de Boxe), liderada pela Rússia, que foi permanentemente banida dos Jogos Olímpicos, na sequência de várias décadas de gestão problemática e acusações de falta de transparência. Khelif chegou, inclusive, a ser suspensa em 2023 por supostamente não cumprir com critérios hormonais para competir em provas internacionais

Imane é mulher e para o Comité Olímpico Internacional pertence à categoria onde chegou à final, que se realiza nesta sexta-feira, 9 de Agosto. Mas como se decide se as atletas podem ou não competir numa prova feminina? Por que motivos variam as decisões entre modalidades e associações?

Como começaram os testes de elegibilidade?

Quando a elegibilidade para as provas femininas começou a ser uma questão, os organismos desportivos depararam-se com um processo difícil do ponto de vista jurídico, escreve a Associated Press (AP).

Na década de 1960, os Jogos Olímpicos utilizavam testes visuais degradantes para "verificar" o sexo das atletas. Os métodos começaram a aproximar-se dos contemporâneos em 2009 e houve uma figura determinante para a evolução dos processos: Caster Semenya. A corredora sul-africana ganhou atenção depois de ser campeã mundial dos 800 metros. Para além disso, foi campeã olímpica em 2012 e em 2016. Ainda hoje continua entre acções judiciais contra as regras do atletismo que, ao longo da carreira, a foram impedindo de competir por causa da sua elevada quantidade de testosterona.

Caster Semenya tem diferenças ao nível do desenvolvimento sexual (DDS), o que pode fazer com que mulheres apresentem características físicas andróginas, desenvolvam um padrão cromossómico diferente ou apresentem níveis de testoterona naturais superiores ao padrão feminino.

Apesar de a ciência não ser conclusiva, muitos órgãos fiscalizadores no desporto afirmam que esta condição dá vantagens injustas a estas mulheres, porque a testosterona é responsável pelo desenvolvimento muscular e ósseo, muitas vezes determinante na prática desportiva.

E a testosterona?

Por isto, muitas vezes a elegibilidade de uma mulher para provas femininas é avaliada por concentração de testosterona. Para referência, a gama normal nos homens adultos é várias vezes superior à das mulheres, sendo até cerca de 30 nanomoles por litro de sangue, em comparação com os menos de 2 nanomoles por litro nas mulheres.

Em 2019, numa audiência do Tribunal Arbitral do Desporto, o órgão dirigente do atletismo chegou a dizer que as atletas com condições DDS eram "biologicamente homens". Semenya, na altura, catalogou a frase como"profundamente dolorosa".

O caso de Semenya foi bastante mediático antes de 2021, quando a identidade de género e a transfobia foram uma grande questão nos Jogos Olímpicos de Tóquio.

Semenya tomou contraceptivos orais de 2010 a 2015 para reduzir os seus níveis de testosterona e referiu que o processo causou inúmeros efeitos secundários indesejáveis, ainda mais para uma atleta de alta competição: aumento de peso, febres, uma sensação constante de náuseas e dores abdominais, todos estes vividos também enquanto corria nos campeonatos mundiais de 2011 e nos Jogos Olímpicos de 2012.

Os testes de elegibilidade sexual são feitos em todos os desportos?

Contudo, nem em todos os desportos as avaliações são feitas pelo nível de testosterona. Isto porque o Comité Olímpico Internacional (COI) confere liberdade a cada organismo dirigente máximo de uma modalidade olímpica para definir as próprias regras, nomeadamente a elegibilidade dos atletas. Por exemplo, no âmbito futebolístico, o COI confia à FIFA a avaliação de elegibilidade dos atletas (que, por sua vez, delega para as federações nacionais).

Para competir na prova feminina da modalidade de boxe em Paris era necessário as atletas estarem identificadas como mulheres no seu passaporte. No entanto, esta regra não foi definida pela IBA (a Federação Internacional de Boxe), foi definida pelo COI, já que a IBA, liderada pela Rússia, foi permanentemente banida dos Jogos Olímpicos, na sequência de várias décadas de gestão problemática e acusações de falta de transparência.

A relação, que não era saudável, amargou depois do desrespeito da IBA face às recomendações do COI para tornar o desporto um lugar mais tolerante e justo, nomeadamente ao nível dos testes de elegibilidade. Nos campeonatos mundiais de 2023, Khelif e Lin foram desqualificadas pela IBA, que afirmou que as atletas não passaram nos testes de elegibilidade para uma competição feminina. A associação nunca forneceu informações credíveis que o justificassem.

Na segunda-feira, em Paris, os responsáveis da IBA admitiram, em conferência de imprensa, que apenas fizeram análises ao sangue a quatro atletas para o Campeonato do Mundo de 2022, entre estas Khelif e Lin, em resposta a queixas de outras equipas. O COI terá tido acesso aos resultados destes testes e Mark Adams, porta-voz da organização, descredibilizou-os de forma enfática. "A ideia de que um teste de testosterona é uma espécie de bala mágica não é verdadeira", acrescentou.

A IBA prometeu, recentemente, atribuir prémios financeiros aos melhores atletas olímpicos e, principalmente, às atletas que perderam contra Khelif e Lin. A Associação Italiana de Boxe disse no domingo que não aceitaria o dinheiro da IBA. Também o pai da finlandesa Pihla Kaivo-oja, que esteve nos quartos-de-final, disse, na segunda-feira, que a sua filha também não o aceitaria, principalmente pelas alegadas relações entre a IBA e Putin.

E no atletismo?

Desde os Jogos de Tóquio, em 2021, o órgão que dirige o Atletismo tornou mais rigorosas as regras de elegibilidade para atletas do sexo feminino com condições DDS. A partir de Março de 2023, começou a exigir que as atletas suprimissem os seus níveis de testosterona para menos de 2,5 nanomoles por litro, durante seis meses, geralmente por meio de tratamento supressor de hormonas, para serem elegíveis para competir.

O órgão regulador do Atletismo também adoptou uma regra que já estaria em vigor, segundo a AP, nas modalidades aquáticas. No caso das mulheres trans, só serão elegíveis aquelas que não passaram pela puberdade masculina. O mesmo acontece no ciclismo. No entanto, por vezes, a avaliação é deixada nas mãos das federações nacionais

Khelif e Lin vão lutar por medalhas no final desta semana, em Roland Garros. Khelif participa na final de -66 quilos na sexta-feira, 9 de Agosto. Lin, por sua vez, lutará na final de -57 quilos no sábado.

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