Que papel está reservado aos professores na era digital?

A máquina traz situações que a humanidade já enfrentou no passado, sendo mesmo assim um tempo de incertezas, já que no devir humano a certeza sempre foi colocada em causa pela inovação.

Foto
"O que aprendemos com a pandemia ao nível da educação é que a tecnologia deve ser integrada no meio escolar" Pixabay/pexels
Ouça este artigo
00:00
07:36

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Num texto recente sobre a tecnologia nas escolas, o sociólogo espanhol Mariano Enguita defende a ideia de que a escola tem uma relação intrínseca com a tecnologia, tendo começado com a escrita, prolongando-se com o livro, dando um passo atrás nas prometidas máquinas de ensinar da segunda metade do século XX, evoluindo com o uso do computador e dispositivos móveis e alterando-se radicalmente com as tecnologias digitais.

Se a evolução da tecnologia é uma constante na organização espácio-temporal da escola e da sala de aula, mudando-se os tempos mudam-se também as direções dos ventos que sopram alto, no dizer de Píndaro, embora a mudança na sociedade seja muito mais intensa e holística com as tecnologias digitais.

O seu uso generalizado traz vantagens e riscos, mormente quando a inteligência artificial (IA) provoca uma mudança fraturante na organização formal e informal da aprendizagem e, consequentemente, na conceção de conhecimento, que se horizontaliza, nos seus novos espaços de produção, e se torna pragmático, numa preditibilidade que os algoritmos realizam a partir da conetividade e da dataficação.

No pensamento de Martin Heidegger, que perspetiva a tecnologia como fim e como meio, o conhecimento tende a ser mais numérico – e não se referia à tecnologia informática, mas às preocupações que a Segunda Guerra Mundial gerou após o uso da bomba atómica – e menos compreensivo, ou seja, um conhecimento do mundo com um fundamento crítico e com uma visão sobre tecnologia que não a reduz à mera instrumentalidade, pois a essência da tecnologia não é tecnológica, mas de natureza humana.

Falando também de oportunidades e de riscos, Stefania Giannini, da UNESCO, aborda a IA numa perspetiva bastante radical, comparando o seu aparecimento à descoberta do fogo, que no mito de Prometeu é uma dádiva dos deuses à humanidade. A comparação que faz baseia-se, por um lado, no potencial disruptivo de transformação das vidas das pessoas a todos os níveis e, por outro, nos riscos que provoca, de acordo com o uso do fogo pelos humanos, deixando de ser segredo de deuses, que já saberiam, certamente, dos seus perigos.

Por mais que o fogo tenha sido privilégio de deuses, o facto é que o fogo manuseado pelos humanos marcou o devir civilizacional, a par de outras mudanças que foram intensamente disruptivas, como explica Darcy Ribeiro em O Processo Civilizatório.

Para a especialista da UNESCO, numa intervenção realizada em Atenas, a 4 de julho de 2024, somos todos “Geração IA”, por mais mudanças que já tivéssemos testemunhado desde os computadores pessoais e a Internet até aos dispositivos móveis e à IA generativa. São novos mundos que se abrem, ainda que, tal como o ato de Prometeu, possam trazer esperança e preocupações, mesmo que esta geração não seja a mesma em todo o mundo.

E se o mundo fascinante da mitologia predominasse nos dias de hoje, e se a IA também tivesse sido entregue à humanidade por Prometeu, será que teríamos as mesmas dúvidas que a relação humanos/não humanos de hoje suscita?

Ao dominar o fogo, a humanidade originou algo tão diferente quanto inimaginável poderá ser também a intervenção dos não humanos na tecnologia. Ou seja, a máquina traz situações que a humanidade já enfrentou no passado, sendo mesmo assim um tempo de incertezas, já que no devir humano a certeza sempre foi colocada em causa pela inovação.

Recorrendo ao Relatório de Monitorização Global da Educação 2023, da UNESCO, Stefania Giannini acentua que a pandemia de covid-19 originou uma perturbação social sem precedentes, que teve consequências na transição para soluções dominadas pela tecnologia, com reflexos imediatos nas escolas.

O que aprendemos com a pandemia ao nível da educação é que a tecnologia deve ser integrada no meio escolar através dos princípios da inclusão, da equidade, da qualidade e da acessibilidade, porque, como defende Martin Heidegger, não há tecnologia neutra, já que a sua utilização tem uma marca ideológica acerca do modo como os humanos compreendemos o mundo.

Com o uso da IA nas escolas muito é alterado de forma profunda, com destaque para o conhecimento e para a metodologia de construção de ambientes de aprendizagem híbridos. O domínio cognitivo do professor envereda por novos caminhos e a participação de crianças e alunos diversifica-se em função de uma imensidão de possibilidades.

Porém, a experiência da pandemia é um alerta para o enorme perigo da desigualdade, mais ainda quando as aplicações de IA provêm de países líderes no investimento em tecnologia. Do mesmo modo, a produção de conteúdos tem origem em visões segmentadas e inseridas em determinados objetivos de domínio social, económico e cultural, com predomínio para a língua inglesa, cujo estatuto de língua franca sai reforçado.

Ainda segundo Stefania Giannini, há um desafio epistemológico que é colocado pela IA. Partindo de uma relação entre inteligência humana e máquinas inteligentes, verifica-se a junção de criadores e consumidores, porque as aplicações de IA generativa são devoradoras de dados, memorizando séculos e séculos de conhecimento que existe na enciclopédia digital que é a Web.

A capacidade de mineração tem sido aumentada sucessivamente, encurtando os longos passos dado pela humanidade, como se o tempo quase não existisse. No entanto, a IA reflete uma inteligência coletiva que está ainda longe de abordar a ação humana, bem como a educação e o currículo, no entendimento de Janet Miller, como consciência de possibilidades, em que subjetividade não é reduzida à personalização ou à individualização a partir dos dados armazenados na Web ou na Internet de Todas as Coisas.

E aqui cabe perguntar se, na escola o lado da relação pedagógica não será secundarizado face à tecnicização dos dados, em que o benefício para quem aprende fica fora do controlo, fazendo do currículo um plano de muitas opções, sem standards e sem um denominador comum a nível social.

Se as aplicações de IA tudo sabem de forma objetiva, a escola corre riscos na abordagem do conhecimento e na seleção de conteúdos, levando a distorções, à desinformação e à menorização de problemas que a humanidade enfrenta, como é o caso gritante das alterações climáticas. Neste sentido, a escola pode perder a sua finalidade social, pública e cidadã.

Na era digital, a que outros autores chamam o imaginário sociotécnico da realidade virtual, que conhecimentos e que competências devem ser abordados na escola? Que aprendizagens são possíveis a partir de um currículo digital ou de um currículo de todas as coisas? Que recursos e materiais de aprendizagem são usados nas escolas? De que modo as aplicações de IA fazem parte do ambiente educativo? E como se avalia o modo de interação das crianças e dos alunos com essas aplicações de IA? De que forma são validadas tais aplicações de IA, se não forem definidas regras e se persistirem interesses inscritos em formas de vigilância e controlo?

São questões do presente e não exclusivamente do futuro, obrigando-nos a uma discussão profunda sobre a escola com os seus presentes e com os seus futuros, pois doravante a realidade escolar será cada vez mais diversa, desigual e problemática.

Há ainda uma questão final que a especialista da UNESCO coloca deste modo, apresentando-a como a mãe de todas as perguntas: Continuaremos a precisar de professores na escola do futuro? Ou, de forma mais cautelosa e plausível: como é que os tutores de IA vão alterar o trabalho dos professores?

Mesmo que se observe a falta de professores a nível mundial, não é crível que o professor seja puramente substituído por aplicações de IA ou por robôs, pois nesse caso a escola passaria a chamar-se outra coisa, por exemplo, centro técnico de instrução, e a sua alma perder-se-ia irremediavelmente. Por isso, a mãe de todas as perguntas face à escola, ao conhecimento e à aprendizagem não será a que antes foi formulada, mas preferencialmente esta: numa era em que as tecnologias digitais, e particularmente as aplicações de IA, moldam o mundo a uma velocidade vertiginosa, que papel está reservado aos professores?

Na nossa opinião, e numa educação inclusiva e multicultural, o professor terá de ser um mediador crítico que privilegia formas flexíveis, reflexivas e críticas no modo como as crianças e os alunos estruturam o seu pensamento e interagem com os outros e com o mundo. Numa sociedade mais competitiva e individualizada, as crianças e os alunos aprenderão a ser tolerantes, solidários e cidadãos comprometido com o mundo.


Os autores escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 3 comentários