Quem consegue viver sete dias desligado?

Sobre o texto “Uma semana noutro mundo”, da autoria de Isabel Coutinho, publicado na revista Pública de 23 de Agosto de 2009.

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Como iriam aguentar os animais da quinta do Farmville se a cuidadora os abandonasse durante sete dias? MIGUEL MADEIRA / PUBLICO
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Durante as férias, há quem defina para si mesmo o objectivo de desligar. Todos precisamos que as férias não sejam como os restantes 350 dias do ano. Mas quem teria coragem de largar a tecnologia durante uma semana? Sem smartphones, internet e outros objectos tecnológicos?

Em 2009, fizeram o desafio à jornalista do PÚBLICO Isabel Coutinho: desligar. A Isabel foi desafiada em Março, mas achou melhor deixar a tecnologia em Agosto, quando meio país pega na trouxa e foge para outras paragens. E, mesmo assim, “só de pensar nisso ficava mal disposta”, escreveu. Percebe-se: como iriam aguentar os animais da quinta do Farmville se a cuidadora os abandonasse durante sete dias?

Não era isso que ia na cabeça da Isabel, na verdade nem sei se ela praticava agricultura digital num tipo de jogo que, à época, era extremamente popular – e uma excelente ferramenta para viciar pessoas que aguardavam ansiosamente pelo momento de colher mais uma rodada de alfaces virtuais. Mas as perguntas que iam na cabaça da jornalista eram outras: “Como vou avisar alguém se tiver um acidente? Sem internet, como saber o que se passa?” Imagino que, aos romanos, tenha passado algumas vezes isto pela cabeça, mas felizmente os pergaminhos com as últimas informações directas a Roma continuavam a circular a uma velocidade que ainda hoje faz inveja a algumas regiões do interior de Portugal, onde a cobertura móvel escasseia.

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Reprodução da primeira página do texto “Uma semana noutro mundo”, publicado em 2009 DR

Isabel manteve por esses dias uma presença tecnológica mínima, mantendo o computador para usar o processador de texto Word. Também havia quem lhe sugerisse uma “experiência completa”, já que “uma semana não vale”: “tem de ir pagar a conta à companhia da água, levantar dinheiro só ao balcão do banco, marcar viagens na agência, mandar vir livros estrangeiros numa livraria, ver os horários do comboio só na estação.” Só de pensar dá vontade de dizer: “não, obrigado.”

Não brinquemos. Desligar hoje da tecnologia é extremamente importante, mas também extremamente difícil e, para muitos, impensável: como ouviria os meus (virtuais) discos? Como leria as notícias dos sítios sobre os quais quero estar informado? Como falaria com as pessoas? A vida, naqueles dias, assumiu contornos de tédio e onde o vício de clicar no ícone do email foi uma constante, segundo o relato na primeira pessoa.

Mas, finalmente, percebo porque é que as operadoras de telecomunicações nos “obrigam” a ter aquele telefone fixo lá em casa que ninguém usa desde o Verão de 2017 (quem sabe, talvez até antes disso): é para termos forma de que as pessoas nos liguem quando estamos numa experiência antitecnologia para uma qualquer reportagem. Foi assim que a Isabel se ligou aos amigos e colegas por esses dias. Ou isso ou esperava que mandassem uma carta: e que bom é receber uma carta que não seja da empresa da luz ou das finanças.

Ao reler este relato, 15 anos depois, sinto vontade de transcrever um parágrafo na integra: “Às 20h50, tenho o pensamento deprimente do dia, sentada à minha secretária: 'O meu computador está morto. Não tem graça nenhuma.' Toca o telefone. Atendo. É o meu namorado e as suas gracinhas. 'Se calhar, esta semana vou mais vezes dormir a tua casa.' ...? 'Para nos dedicarmos ao sexo, já que não tens nada para fazer'.” Ainda dizem que a vida offline não tem vantagens? Para as relações tem muitas, excepto para as que são à distância...

Quando volta a ligar o telemóvel ao fim de uma semana, Isabel percebe pelas mensagens que caíram e pelas (poucas) chamadas não atendidas que “não perdeu nada de especial”. Hoje tenho a certeza de que não só não perdeu como até ganhou. Sobre os emails recebidos – quase 600 –, mais vale não comentar, é só a vida de um jornalista a acontecer.


O P2 Verão mergulha no arquivo do PÚBLICO para recordar histórias de outros tempos.

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