“A Baixa de Lisboa há muito que se tornou um deserto”

Sobre o texto “Habitantes do Rossio não chegam a ser uma dezena”, da autoria de Joana Haderer e Joana Pereira Bastos com a agência Lusa, publicado no caderno local do PÚBLICO a 26 de Março de 2005.

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De uma cidade sem gente passámos para gente sem cidade e sem capacidade para sequer ter uma casa numa JORGE FIRMINO
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O título desta crónica tinha tudo para ser uma piada de mau gosto, mas a Lisboa de 2005 era descrita pelos poucos moradores do Rossio da mesma forma como o ex-ministro Mário Lino olhava para a margem sul do Tejo: um deserto. Quem observa a Lisboa de 2024 sabe que, em Portugal, ou oito ou 80. Uma cidade de comércio que se desertificava assim que fechavam as últimas lojas transformou-se numa cidade em que turistas pagam para se ver uns aos outros.

Em 2005, restavam cinco moradores no Rossio, uma das praças mais importantes da cidade, não sei quantos ainda restam hoje, mas temo que já não resista nenhum. “O problema é comum a muitas cidades”, escrevia-se. Sem incentivos à renovação das casas, o comércio foi ganhando espaço aos andares que se iam desocupando, não tendo os senhorios grande interesse em ocupar as casas com gente, já que, com as lojas, “ganham mais dinheiro”. Lisboa era então uma cidade “visitada por milhares de turistas”. “[Porém, chegada] a noite, termina a agitação das lojas, os escassos moradores fecham-se nas suas casas e não se avista ninguém.” A zona histórica era descrita como “entregue à sua sorte”, não era mentira.

A Baixa continua a ser terreno de poucos moradores e de muitos turistas, mas já não é o deserto de outra era. Uns ficam encantados com os sete euros que pagam por sardinhas em lata com um ano do calendário estampado na tampa, outros preferem os very typical pastéis de bacalhau com queijo da Serra nunca vistos em mais nenhum lugar, mas vendidos como se fossem o pão nosso de cada dia para um português, numa experiência digna se gastar cinco euros. A combinação de sol, viagens baratas e paisagens instagramaveis – seja lá o que isso for – pôs Lisboa em tudo o que é ranking das melhores cidades para se visitar. Pena não se encontrar a capital no ranking das melhores cidades para se viver, mas essa já é outra história.

As lojas iguais a tantas outras cidades continuam a multiplicar-se, numa homogeneização cultural que faz com que o mais diferente sejam as paisagens retratadas nos ímanes das lojas de recordações. O quarteirão da pastelaria Suíça vai agora receber a segunda maior loja de roupa Zara do mundo: uma medalha de prata para Portugal, numa cidade que ainda não soube encontrar o equilíbrio certo entre os que querem apenas nela viver e os que a querem visitar. A Lisboa dos free tours, dos bike tours, dos tuk tuk tours e dos cruzeiros é parte de uma cidade para turista ver, tal parque de diversões de entrada livre e sem consumo obrigatório.

Em 2005, as pessoas “preferiam ir viver para as casas novas na periferia”. Em 2024, nem no centro nem na periferia. De uma cidade sem gente passámos para gente sem cidade e sem capacidade para sequer ter uma casa numa.

É certo que o turismo deu uma nova oportunidade a cidades como Lisboa para se renovar, num país que tinha deixado completamente ao abandono os centros das suas cidades, mas hoje o risco é outro: é a transformação de uma cidade numa espécie de resort fechado sem presença de locais – ou onde estes apenas aparecem para trabalhar nos serviços virados para os turistas – e onde os turistas só têm contacto com outros turistas iguais a eles. E para quê ir a Lisboa, se ela está a ficar igual a tantas outras urbes? E igualmente cara como as mais caras cidades da Europa… Só a diferenciação cultural nos torna atractivos e cria o nosso lugar no mundo.

Em 2005, dizia-se que o processo para reverter o abandono da Baixa era “extremamente lento”. Em 2024, vemos que foi tudo tão rápido que ninguém aposta onde vai parar. Nesta rápida transição, talvez nunca se tenha encontrado o ponto de equilíbrio.

O P2 Verão mergulha no arquivo do PÚBLICO para recordar histórias de outros tempos.

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