A difícil arte de praticar medicina nos dias de hoje

Os direitos constitucionais à saúde, educação e habitação passaram a ser mercados especulativo. A desacreditação do SNS faz parte da transição da Saúde para o mercado e oportunidade de negócio.

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Médicos concentrados junto ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, participam na greve geral e ao trabalho suplementar nos cuidados de saúde primário, no passado dia 23 de Julho FILIPE AMORIM/Lusa
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Apesar de ser médica e exercer há mais de dez anos, quando penso na figura típica de um/a médico/a ou cirurgiã/o imediatamente me surge a imagem de um homem de 50 anos de idade, bem vestido e com um bom carro. Esta personificação de privilégio e poder ainda se mantém, e a maioria de nós ainda associa esta imagem a quem pratica medicina, a de um homem de meia-idade, bem vestido, com ar sábio, que deixa o seu Maserati mal estacionado nas traseiras da urgência de um hospital público, e que sai à pressa para dar consulta no privado.

Mas é mesmo assim? Este estereótipo da classe médica tem sido utilizado nos últimos meses como propaganda politica, de forma a minar a luta das/os médicas/os do Serviço Nacional de Saúde (SNS): São gananciosos, privilegiados, sem noção, sem resiliência… É caso para perguntar: Como “se faz” medicina atualmente?

Nos últimos 50 anos, assistimos a muitas alterações na organização dos cuidados de saúde, a tremendos avanços tecnológicos e científicos. Há 50 ou 60 anos, o atendimento em cuidados de saúde era mais focado na resolução de problemas agudos. Com a melhoria das condições de vida e a evolução científica temos hoje uma população envelhecida com doenças crónicas que necessitam de cuidados contínuos. Por isso, atualmente a prática da medicina inclui a prevenção/tratamento de doença aguda, bem como a prevenção de complicações no contexto de doenças crónicas.

Para que isto seja possível é essencial uma boa rede de cuidados de proximidade, no SNS representada pelos centros de saúde e os seus profissionais. Nos primórdios da medicina e da cirurgia, pequenos avanços permitiram excelentes melhorias nos resultados, atualmente são necessários grandes investimentos para conseguirmos atingir melhorias em indicadores de saúde ou de qualidade.

Recordando os primórdios da cirurgia, Theodor Kocher (professor e diretor de serviço de cirurgia do Inselspital Bern, na Suíça) revolucionou a cirurgia com a introdução de grampos hemostáticos e desinfeção de campos cirúrgicos. Gestos que, atualmente são rotina nos blocos operatórios de todo o mundo, tiveram na altura um impacto muito significativo na morbimortalidade cirúrgica de diversos procedimentos. Atualmente os avanços cirúrgicos com a introdução da cirurgia robótica, por exemplo, custam milhares de milhões de euros sendo as melhorias menos expressivas. Se antes seria excelente evitar a morte de um paciente por hemorragia pós-operatória, hoje almejamos retirar órgãos doentes e reconstruí-los mediante três ou quatro incisões cirúrgicas.

A figura solitária do/a médico/a é obsoleta, a abordagem pontual de patologias crónicas é obsoleta. Trabalhamos em equipa com um grau de expertise cada vez mais exigente. Mais do que escalas de urgência completas, o SNS precisa de cuidados primários robustos, acessíveis e de proximidade. Precisa de mais profissionais para abarcar as exigências técnicas atuais. Por isso, não, as/os médicas/os mais novas/os não são preguiçosas/os, não são privilegiadas/os nem menos resilientes. A realidade é outra, a forma de exercer medicina é outra, e é de máxima urgência adaptar o SNS a essa realidade!

Onde estão as mulheres?

Não podemos negar que ser profissional de saúde sempre esteve associado a um estatuto económico-social privilegiado. Temos pelo país fora ruas com nomes de médicos ilustres, até Paulo Portas confessou numa tertúlia organizada pelo Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos que a sua “hierarquia de respeito” é composta por “Deus, seguido dos médicos e depois, as restantes profissões”. Se no passado o acesso ao ensino superior e por consequência ao curso de medicina só era possível às elites, com a democratização do ensino vemos pessoas “comuns” a estudar medicina e a tornarem-se médicas/os.

Os dados da Pordata de 2022 mostram que as mulheres representam 57% dos médicos em Portugal. Desde 2010 que as mulheres estão em maioria nas fileiras da Medicina. No entanto, na comunicação social, e mesmo nas revistas de divulgação dirigidas aos profissionais, persiste no estereótipo do senhor de 50 anos. A edição número 233 da Revista da Ordem dos Médicos é exemplo disso. Das 64 páginas nenhuma referência a colegas do género feminino que se têm destacado no SNS ou na sua área de especialização.

Sobre os 85 anos da Ordem dos Médicos, nenhuma opinião de colegas mulheres — até hoje nunca foi eleita uma bastonária. Em suma, as representações do grupo profissional na sociedade estão longe da realidade. A maioria dos médicos é mulher e tem menos de 45 anos (fonte Ordem dos Médicos).

Desigualdades de género e a "falsa" meritocracia

Cresci ouvindo os meus pais dizer: “Estuda se queres ser alguém na vida.” Nos anos 1990, ter estudos universitários era sinónimo de uma vida estável e de fartura. Eu, como tantas outras pessoas nascidas nos anos 1980, simbolizamos os sonhos dos nossos pais operários: somos doutoras/es, engenheiras/os, arquitectas/os, professoras/es. Todo o nosso mérito e esforço seria recompensado, certo? Mais ou menos…

Chegar ao curso de medicina e fazê-lo depende muito do nosso “mérito” e esforço. De certa forma, existe uma almofada social que permite a estudantes em situações económicas mais precárias formarem-se, mesmo com os constrangimentos que sabemos existirem. No último ano de curso, as desigualdades económicas são determinantes para a nossa carreira. O processo de seleção da formação específica, a especialidade, é aparentemente justo — existe uma prova de seriação e a ordem de escolha é em função do desempenho nessa prova. A minha pessoa no 5.° ano do curso dizia “justo, pois claro! É um exame!”

Agora olho para trás e vejo as limitações que tive, que condicionaram o meu desempenho (e tantos outros colegas nas mesmas ou piores circunstâncias):

  • Menos tempo para dedicar ao estudo no contexto de estudante-trabalhador;
  • Menos dinheiro para investir em cursos de preparação para a prova;
  • Menos dinheiro para investir em atividades de bem-estar ou consultas de psicologia. (Lembro bem o dia em que decidi parar de estudar porque entrava em burnout).

Estas circunstâncias parecem ser triviais e de responsabilidade individual, porém colegas vindos de famílias mais abastadas não se depararam com estes constrangimentos. Uma situação económica mais favorável vai facilitar a obtenção de melhores resultados. Com certeza que existem exceções, mas se analisarmos a genealogia de algumas famílias poderemos concluir que a especialidade de dermatologia é genética? Dentro da formação específica, estas desigualdades socioeconómicas tornam a aprendizagem e a obtenção de melhores notas na avaliação do currículo mais desigual.

No currículo são valorizados cursos e formações, apresentações em congressos, publicações em jornais peer-review, estágios no estrangeiro. Estas atividades têm custos associados, os hospitais de formação não têm fundos para as financiar. A sua execução depende dos patrocínios da indústria, do sindicato ou do poder económico de cada um. Aqui vemos que o mérito pouca influência tem sobre o acesso a estas atividades.

Ou se arranja financiamento ou seremos ultrapassados. É fácil concluir que as/os médicas/os vindos de famílias abastadas, tenham um começo mais folgado e poderão mais facilmente aceder a estas atividades que outros colegas de origens da classe trabalhadora. Desde 2010 que, em média, as/os médicas/os do SNS perderam 1200 euros, o que condiciona não só o dia a dia destes profissionais como o seu desempenho para fins de avaliação curricular.

Não podia deixar de abordar, brevemente, os constrangimentos que muitas mulheres médicas têm na sua carreira, fruto da sua condição biológica e social de serem mulheres. Apesar das mudanças sociais e a participação dos pares nas tarefas domésticas e de cuidado, as mulheres portuguesas passam em média quase mais duas horas do seu dia que os homens a executar estas tarefas.

No caso específico das mulheres médicas existem duas horas extra que poderiam ser dedicadas a atividade extra laboral importante para o seu futuro profissional. É ilusório pensar que todas/os as/os médicas/os têm acesso às mesmas oportunidades ou estão em pé de igualdade. A hierarquia socioeconómica do país espelha-se na classe médica, quer no SNS, quer fora dele.

A mercantilização da saúde das pessoas comuns

Em 2012, tinha concluído o curso e iniciado a minha carreira num hospital público. Na altura uma PPP com o Grupo Mello Saúde. Lembro bem o primeiro dia de trabalho em que foi transmitido um vídeo sobre as origens do grande grupo económico e da sua hegemonia durante a ditadura fascista de Salazar e viu o seu declínio no pós-25 de abril.

Não sei se por ter crescido a ouvir as histórias de privação dos meus familiares durante o período do Estado Novo, senti um desconforto. O discurso soava a propaganda. Com 25 anos, achava que tal não tinha lugar num hospital, que apesar de ter administração privada, era público e pertencia ao SNS, era algo de todos.

Durante esse ano, apercebi-me da quantidade de burocracia que implicava a prestação de cuidados e o pouco tempo que sobrava para tentar observar doentes no limiar da privacidade e dos recursos. Nem a administração privada e hospital novo tinham melhorado esse aspeto.

Decorridos dez anos e uma pandemia, assistimos ao declínio do Estado Social. Tem sido, sem dúvida, uma operação brilhante de desacreditação do SNS e dos seus profissionais. Aparentemente, nem as injeções de capital são suficientes para garantir urgências em funcionamento ou atendimento a grávidas de risco como noticiados nos últimos meses. O fosso entre o orçamento e a realidade é gigante. A recusa dos profissionais em realizar ainda mais horas extraordinárias e os constrangimentos observados levam a uma conclusão: O funcionamento em pleno do SNS tem dependido da boa vontade dos profissionais.

Se as condições de trabalho não melhoraram, nem os salários, para onde foi direcionado o orçamento da saúde? Para os convénios com os privados? Para as empresas de trabalho temporário? Como a doença é uma inevitabilidade (mesmo que nos abstenhamos de comer bacalhau à Gomes de Sá em agosto) não existem muitas opções: os ricos e remediados fazem um seguro de saúde (e até esses, tem limite). Os pobres estão entregues à sua sorte. Soa familiar?

Os EUA são exemplo do serviço de saúde transformado em mercado livre. Há quem defenda que os sistemas privados são mais eficientes e trazem melhores resultados. Sem dúvida que em termos económicos, sim, não é à-toa que o sistema de saúde americano é um dos mais caros do mundo e movimenta bilhões de dólares na economia. Porém os EUA é o país (dito) desenvolvido com piores indicadores de saúde.

Num mundo regido pelo dinheiro tudo acaba por ter um preço. Os direitos constitucionais à saúde, educação e habitação passaram a ser mercados especulativos ou “oportunidades de negócio”. A desacreditação do SNS e dos seus profissionais faz parte da transição da Saúde para o mercado e oportunidade de negócio. O exemplo americano é um vislumbre do que nos espreita: os nossos corpos, as nossas doenças serão bens transacionáveis num “mercado livre”, em que o valor monetário é justificação para negação de cuidados ou sobretratamento.

Dentro do sistema capitalista, a democratização do acesso à medicina e o seu exercício levou à degradação das condições de trabalho, porém despertou consciências e um desejo de tornar o SNS mais do que caridade.

Este texto é dedicado a todas/os colegas em luta e a todas as pessoas que ainda acreditam no SNS.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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