Quando o betão ainda ganhava eleições

Sobre o texto “Finalmente a auto-estrada chega ao Algarve”, da autoria de Nuno Ferreira, publicado no primeiro caderno do PÚBLICO de 26 de Julho de 2002.

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A auto-estrada A2 demorou 32 anos a chegar ao Algarve Miguel Madeira
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Portugal é um país que gosta de fazer as coisas com vagar. Só assim se explica que, desde a abertura do primeiro troço até à inauguração completa da auto-estrada do Sul, se tenham passado 36 anos. Ainda assim, nada que cause inveja ao novo aeroporto de Lisboa e, muito menos, ao Palácio da Ajuda.

Quem anda pelo país sabe que hoje é possível ir sempre em auto-estrada de Pinela (Bragança) a Farta Vacas (Lagos), mas só há 22 anos se tornou possível chegar ao Algarve. O país mudou, excepto para quem quer poupar uns 23,30€ em taxas de portagem (desde Lisboa) ou para os que não dispensam a velhinha estrada rumo ao sul, com direito a paragem no Canal Caveira ou na Mimosa para respectivo reabastecimento alimentar.

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Tudo culminou num dia de Julho de 2002, em que a missa que abençoou a auto-estrada para o Algarve foi um exclusivo SIC. E eu que pensava que a exclusividade nas transmissões de TV era coisa para eventos desportivos.

Nas portagens de Paderne juntou-se o bispo, o ministro e o presidente da Brisa. Ao jornalista do PÚBLICO Nuno Ferreira até deixavam “ir rezar”, mas fazer a cobertura de uma inauguração já não dava, porque, pelos vistos, era mesmo um exclusivo do canal de televisão. Estávamos em 2002 e a festa política era abalada pela morte de dois trabalhadores na semana da inauguração. O último ano e meio de obra tinha sido trágico, registando-se nove acidentes mortais nas obras da A2 com 14 vidas perdidas. A justificação estava na “pressão política sobre os prazos de obra” e na existência de uma “mão-de-obra não familiarizada com a actividade”, assim se escreveu no PÚBLICO por aqueles dias.

Antes de ser feita, quase todos os autarcas do Sul queriam a auto-estrada nos seus concelhos, na esperança de que os turistas fizessem um “rally tascas” rumo ao Algarve e parassem em cada saída da via rápida para beber mais um cafezinho. Mas as auto-estradas são feitas para gente com pressa de chegar e não foi a A2 que salvou Aljustrel, Castro Verde ou Almodôvar. Hoje, até as portagens funcionam num quase piloto-automático que pouco emprego gera.

Em 2002, havia quem não hesitasse em chamar à A2 a “última obra pública emblemática”. Nem TGV, nem aeroporto podem ter esse título já atribuído a um troço de alcatrão a sul, apto para ser percorrido a 120 quilómetros por hora rumo a uma praia qualquer. E bem importante esta obra era para alguns políticos socialistas. “Se tivéssemos a auto-estrada para o Algarve [pronta em Outubro de 1999,] ganhávamos por maioria absoluta”, ouviam-se nos bastidores de então. Neste país, o betão e o alcatrão foram sempre garantia de grandes feitos políticos. Não houve maioria absoluta para Guterres – as obras prolongaram-se e as autárquicas de 2001 ditaram um fim precoce da legislatura. Acabou por ser o Governo de Durão Barroso a cortar a fita de uma obra de Guterres e Cavaco. O tempo em que inaugurar uma estrada era vencer eleições já tinha acabado.

Já Lúcia Costa, moradora numa das aldeias junto ao estaleiro das obras, lembra que os milhares de imigrantes que asseguraram a construção deste troço “sofreram as penas da lei” durante os trabalhos. Mais uma prova de que o país não era o mesmo sem imigrantes e, se não fossem eles, ainda hoje demorávamos o dobro do tempo a viajar para sul.

E assim, ano após ano, milhares de famílias portuguesas continuam a usar a A2 para chegar às suas férias de Verão. São meses em que se volta a olhar para o território que existe a sul da ribeira de Odelouca, tantas vezes só recordado quando o calor aperta ou quando o Chega ganha as eleições por lá.

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