Joe Biden: Tudo o que um homem é

Biden foi, pelas razões atrás mencionadas, “convidado” a abandonar a sua recandidatura. E fê-lo. A custo, mas fê-lo, mostrando um juízo amadurecido.

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Joe Biden, na sexta-feira, enverga o casaco da farda oficial dos atletas olímpicos norte-americanos Nathan Howard/Reuters
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Em dado instante, coprotagonista do maior espetáculo do mundo — se se lembrou do circo, acertou no propósito da frase —, no instante seguinte, um papel secundário, quase de figurante.

A idade é tramada, não perdoa a ninguém. E se não é a idade, é a doença. A distinção é intencional: idade e doença não são sinónimos, embora a primeira aumente as probabilidades de surgimento da segunda.

Há gente de pouca idade, bastante doente; e gente de idade avançada, sem quaisquer doenças. Assim é também com o juízo. Recordo um provérbio: “Há homens que chegam a ser velhos na idade, sem ainda ter amadurecido no juízo.”

Joe Biden tem 81 anos. Revela indícios de dificuldades físicas — há uns tempos, pedi a um grupo de jovens de 15 anos que saltasse um muro; assusta-me que algum dia tenham de fugir de um cão raivoso ou de um incêndio —, bem como esquecimentos, “paragens” e devaneios.

(Há gente jovem que padece de tudo isto.)

Biden foi, pelas razões atrás mencionadas, “convidado” a abandonar a sua recandidatura. E fê-lo. A custo, mas fê-lo, mostrando um juízo amadurecido. As sondagens também deram um empurrão valente, mas não ser cego perante as evidências indica maturidade.

“Há um tempo e um lugar para longos anos de experiência na vida pública. Há também um tempo e um lugar para novas vozes, vozes frescas, sim, vozes mais jovens, e esse tempo e lugar é agora”, disse Joe Biden ao justificar a desistência da sua recandidatura à Casa Branca.

Parei várias vezes para pensar no homem. Não no Presidente dos Estados Unidos da América, nem no candidato à presidência, mas no homem. E em como estaria ele a ver, viver e sentir tudo aquilo que sobre si era dito, bem como a forma como o olhavam. O olhar. Às vezes, um olhar basta.

Tudo o que um homem é é o título de um livro do canadiano David Szalay. Num enredo que percorre várias etapas da vida, nove homens, em momentos distintos e em busca de compreensão, levam-nos a viajar desde a juventude até à velhice, fazendo-nos refletir sobre a condição masculina contemporânea. Através de situações de conflito, competição, poder e também vulnerabilidade, Szalay apresenta-nos com uma honestidade cruel “os homens tal como eles são: ridículos e inarticulados, chocantes e desprezíveis, vitais e hilariantes; e, à medida que são ultrapassados pela idade, os desafios tornam-se extraordinariamente difíceis”.

Recordei Joe Biden ao conhecer a história do nono homem de Tudo o que um homem é. Partilho um excerto.

“Ontem foi a Ravena — apeteceu-lhe, não tinha mais nada para fazer — e teve dificuldades no trânsito. Perdeu-se, enervou-se e acabou por se meter em contramão por uma ruazinha de sentido único. Só se apercebeu quando, aí a meio, lhe apareceu à frente uma carrinha, o condutor irritado a fazer-lhe sinais de luzes, e, sem espaço para mais nada, teve de voltar de marcha-atrás por onde viera, a olhar por cima do ombro, os olhos franzidos do stress e uma impressão cada vez maior de isolamento. A rua era toda a direito; não deveria ter sido difícil. Mas, por algum motivo, não parava de curvar a trajetória. Teve de travar várias vezes para a corrigir. Estava a agarrar o volante com muita força, como se corresse o risco de se afogar e o volante fosse a sua única salvação. E o condutor da carrinha a berrar coisas que ele não ouvia, como num filme mudo. Recorda as caras das pessoas no passeio, a testemunharem a cena e a rirem, todas a apontar, a mostrarem-lhe que se tinha enganado e a sorrir-lhe. Algumas até o fizeram com um ar compassivo. O que só piorou a situação. Pelas suas expressões, era óbvio que o que estavam a ver que lhes causava dó — um velho, qual peixe fora de água, a provocar o caos. Os rostos de todas aquelas pessoas disseram-lhe que era isso o que estavam a ver. E foi um choque. Não era, de todo, a imagem que ele tinha de si mesmo. Mais tarde, depois de finalmente conseguir estacionar, ficou algum tempo a andar pelas ruas, absurdamente abalado com o sucedido.”


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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