O Coração Ainda Bate. A mordaça

Inês Meneses e o que une, mais do que nunca, as mulheres.

Nunca estive presente em nenhuma conversa de homens sobre mulheres, mas, evidentemente, tento ser presença assídua em conversas de mulheres sobre homens. Por que falamos? Porque já nos calámos demasiado tempo e hoje podemos ser desbocadas, destravadas, desinibidas e não temer julgamentos.

A intimidade tem sido um espaço para murmúrios, coisas ditas entredentes com a vergonha a não sair da boca ou então a ser soprada dos lábios muito ao de leve. As mulheres de ontem (as mulheres do tempo das nossas mães) não falavam por temer que a vida delas chegasse a outras casas. Foi assim que se perpetuaram abusos, violência, segredos terríveis que soterraram vidas para sempre. Quando hoje arrisco perceber melhor alguém, tento espreitar para dentro do seu passado. O que se viveu dentro de casa pode aniquilar irremediavelmente uma vida.

Somos agora mais livres no discurso. Temos na boca a urgência da denúncia. Uma mulher percebe que não está sozinha quando identifica na outra uma dor semelhante, uma vergonha comum. Às vezes acabamos todas a rir, outras, a chorar.

Temos pouca auto-estima? Temos, nós mulheres, e têm os homens que sempre gozaram da fama de serem fanfarrões no discurso entre pares e pouco hábeis a falar de sentimentos entre eles. É diferente gabarmo-nos ou chorarmos. Muito diferente. Entre mulheres, as coisas hoje sobrepõem-se. Talvez as mulheres tenham perdido o medo do ridículo e os homens continuem muito agarrados ao orgulho. Sobre a auto-estima que anda por aí plasmada: fomos sempre silenciadas e julgadas. Como é que do silêncio se ergue a confiança? Só quando o silêncio se torna uma escolha e não uma condenação.

A intimidade deve conhecer limites. Parece-me bastante razoável respeitar o nosso parceiro ou parceira porque nos merece essa consideração, porque é justo connosco, porque há uma relação igualitária, porque se trabalha para o amor e, mesmo com caminhos paralelos, ninguém se atropela. Já quando essa intimidade esconde comportamentos abusivos, desrespeito sistemático, mentiras graves e nisso está implícita uma mordaça, acho que temos o dever de falar. Se calamos, alimentamos o terror e o amor não tem lugar aí.

As mulheres têm a auto-estima que podem (às vezes são as outras a boicotarem-nos, outras vezes os homens e, não raras vezes, nós próprias). A falta de auto-estima é uma garagem que aparca perfeitamente a relação tóxica. O medo de falar. O pânico de contar demasiado. Talvez ainda não nos saibamos proteger devidamente umas às outras. Somos boas a driblar conversa íntima, mas a protecção é um tapete que nos escorrega dos pés. Os homens continuam a ser mais corporativos porque há aqui um lado físico que quase se sobrepõe. Mas não se esqueçam que a falta de auto-estima dos homens desagua, se calhar, em coisas menos fundas. Muitas vezes é de virilidade que se fala. E não se vai mais longe.

Comecei esta crónica a falar das conversas entre mulheres, da possibilidade de comunicarmos sem espartilhos e fui parar à auto-estima. Porque é a confiança que nos empurra para a comunicação. Uma mulher segura não teme expor aquilo que noutros tempos se poderia assemelhar a uma fraqueza, à tal vergonha, ao medo de revelar. Estou convencida de que hoje nos ajudamos umas às outras quando partilhamos experiências. Agora podemos chamar-lhes, sem medo, experiências. Antigamente era intimidade. A tal que nos deixava mudas, em pânico por se saber que não éramos a mulher perfeita ou tínhamos o marido ideal. É preciso rematar dizendo que nenhum de nós conhece a essa perfeição? Que somos todos uma mistura de muitas e diversas coisas e, portanto, deixamos um determinado rasto na vida dos outros. Bom e mau? Chama-se experiência. É bom poder partilhá-la.

Nessa partilha percebemos que não estamos sozinhos.

O coração ainda bate

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