O vício do povo por raspar, raspar, raspar

Sobre o texto “Fácil, barata e dá milhares”, da autoria de Carlos Romero, publicado no primeiro caderno do PÚBLICO a 31 de Julho de 1995.

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Numa sociedade sem tempo para parar, ainda há razões de esperança: há sempre tempo para raspar mais uma Rui Gaudêncio
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“Só para experimentar”, Bernardino Rocha, um reformado com então 66 anos, comprou duas dezenas de cartões de "raspadinha" num só dia. Nestas viagens no tempo pelas histórias de outros anos que ficaram perdidas nas páginas do PÚBLICO, fiquei com uma enorme vontade de viajar no tempo só para alertar o senhor Bernardino para que, para experimentar algo, basta provar uma vez. Isto, claro, se não estivermos a falar daquelas bancas de comida que nos dão coisas “só para experimentar” nos supermercados, oportunidade bem mais legítima para se fazer uma “experimentação” prolongada.

A história é sobre a introdução da "raspadinha" em Portugal – no Verão de 1995 –, vista como a salvação dos jogos da Santa Casa, depois da perda de popularidade da Lotaria Clássica. Esperava-se que a Instantânea se tornasse o segundo jogo mais popular, logo atrás do Totobola, mas as coisas não correram bem no início e, em 1997, chegou a ponderar-se o fim da Instantânea. A primeira série tinha 20 milhões de "raspadinhas", vendidas por um valor que – aos preços de hoje – andaria à volta dos 50 cêntimos. Tudo para vender “em cerca de um mês”, enquanto a febre da "raspadinha" durasse.

Pode ser um exercício demasiado simplista, mas não deixa de ter a sua graça. O primeiro passo é procurar nos arquivos um artigo com a visão sobre o futuro de alguma coisa, ler e depois pensar: “Que ingénuos éramos.”

Em 1995 não se falava de “vício”, mas sim de “simplicidade”, e a “dependência” não era mais do que “excitação”. Como belos são os eufemismos na língua portuguesa. Tenho mais sugestões: os “apostadores” podem passar a “investidores sem capital garantido” e um jogador que gastou o dinheiro todo e ficou sem prémios pode passar a ser uma pessoa que, “pelo menos, é capaz de ter sorte no amor”.

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Um estudo de 2023 mostrou que cerca de 100 mil portugueses tinham sintomas de vício ligados a este jogo, em particular os mais pobres, mas ainda havia quem, nos quiosques, se queixasse do trabalho que dava vender estes cartões para tão pouco lucro – os pontos de venda ficavam então com três escudos por cada "raspadinha" vendida. Compradores e vendedores unidos na mesma luta: Portugal só lá vai com lucro fácil, que isto de trabalhar muito já se viu que cansa e não dá milhões.

Praticamente 29 anos depois, há coisas que nunca mudam: “Entrou-me aqui um cliente para comprar um maço de tabaco e, quando viu cartões de lotaria instantânea, só de cá saiu depois de uma boa meia hora a raspar. Não ganhou quase nada.” Numa sociedade sem tempo para parar, ainda há razões de esperança: há sempre tempo para raspar mais uma.

Lembra-se do Bernardino? Nos 20 cartões que comprou, os poucos prémios que recebeu foram de 100 e 200 escudos – a "raspadinha" custava 100 escudos. O dinheiro que ganhou – ou melhor, que recuperou –, usou-o para comprar mais "raspadinhas". “Hoje perdi a cabeça”, admitiu. Percebe-se o porquê de a sorte não bater à porta a todos: entre as 20 milhões de "raspadinhas" da primeira série, só 45 tinham prémios “de encher o olho”, com mais de mil contos. Feitas as contas: a probabilidade de sair a sorte grande andava na casa dos 0,0002%, mas, ainda assim, uma probabilidade bem maior do que os 0,0000007% que tem de lhe sair o Euromilhões se jogar nesta sexta-feira.

Só no ano passado, a "raspadinha" rendeu cinco milhões de euros por dia. Contas por alto, tirando as crianças, cada português gasta em média por dia um 1,70 euros neste jogo social. Em entrevista ao PÚBLICO, a 22 de Junho de 2013, Mário Soares defendia que “nós [Portugal] temos futuro e vamos ser um país rico”, já só nos falta perceber que a riqueza não se gera a jogar à "raspadinha"…


O P2 Verão mergulha no arquivo do PÚBLICO para recordar histórias de outros tempos.

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