E nasce um projecto romântico na serra da Arrábida

Um empresário brasileiro recuperou vinhas velhas de Castelão e multiplicou o material vegetativo da casta. Esta paixão pela Arrábida está dentro de quatro garrafas Quinta do Paraíso.

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O projecto inicial envolvia a plantação de castas italianas, mas ganhou a recuperação de castas tradicionais do terroir DR
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Quando a gente pensa que já viu tudo no mundo do vinho, a realidade encarrega-se de nos dar uma lição de humildade. Beto Sicupira é daqueles empresários que figuram nos lugares cimeiros da lista dos mais ricos do Brasil. Há poucos anos apaixonou-se e comprou uma propriedade na Arrábida (a Quinta do Paraíso, com 23 hectares), o que, para início de conversa, já revela muito bom gosto.

Por regra, quando a paixão pelo vinho e a abundância de liquidez se juntam, é mais ou menos certo que a estratégia é, em Portugal, comprar uma quinta no Douro – obviamente –, contratar os nomes sonantes da enologia, criar uma marca e colocar as garrafas à venda por muitos euros. Se se venderem, tudo bem; se não, paciência. Ficam os activos. Sucede que Beto Sicupira está a léguas deste perfil mais ou menos estereotipado. Empresário da cabeça aos pés, não se meteu a fazer vinho para perder dinheiro, mas também não é este negócio na Arrábida que aumentará a sua fortuna, que deve ser daquelas que demora alguns segundos a juntar os zeros todos até acertarmos no valor final.

Sendo um homem ligado a Itália, a ideia inicial era meter umas castas italianas na Arrábida e produzir vinhos que fizessem boa figura à mesa com os amigos (mesa que costuma ser preparada por si, visto que tem artes ao fogão). Mas, por portas e travessas (e com cozidos à portuguesa à mistura), acabou por conhecer Pedro Marques (Vale da Capucha) e tudo mudou de um dia para o outro.

Conhecido por fazer vinhos com a menor intervenção possível e sempre respeitadores do carácter do lugar, o enólogo, passeando pela Arrábida entre parcelas de vinhas velhas de Castelão meio abandonadas ou totalmente abandonadas, começou a cozinhar uma ideia que, quando bem apurada, apresentou ao empresário. “E se em vez de metermos aqui castas italianas fizéssemos acordos com os donos das vinhas para as recuperar? E se em vez de vinhos de perfil estrangeiro recuperássemos os tintos de Castelão da serra da Arrábida? E se em vez de irmos a viveiristas comprar plantas de Castelão instalássemos aqui na quinta uma vinha com material vegetativo das vinhas velhas que já cá estão, adaptadas ao ambiente da serra, e com isso fizéssemos vinhos Quinta do Paraíso que seriam a recuperação da biodiversidade em risco de desaparecer?”

Beto, um amante da natureza que passa muito tempo no mar e em passeios de bicicleta, comprou a ideia e, desde 2019, Pedro Marques não tem feito outra coisa por aqui senão mimar e recuperar vinhas de Castelão e enxertar bacelos com varas que vai retirando das tais vinhas. A nova vinha da Quinta do Paraíso terá cerca de seis mil plantas, maioritariamente de Castelão, mas também de Moscatel (de Alexandria e Roxo), Fernão Pires e, cereja em cima do bolo, de Bastardinho, que vem de uma única videira velha que Pedro Marques, com a ajuda de Domingos Soares Franco (José Maria da Fonseca), descobriu numa quinta em Azeitão.

Por aqui e por ali, na vinha estão oliveiras com bonita idade e que darão azeite daqui a algum tempo. Na realidade, isto não é bem uma vinha – é uma arca de Noé da viticultura e da olivicultura da Arrábida/Azeitão. Por agora, é só vinha e olival.

Enquanto a vinha nova de 1,5 hectares não produz, Pedro Marques está a vinificar desde 2021 – num antigo ovil transformado em adega com ânforas catalãs, cubas de cimento e pequenos tonéis de carvalho húngaro – cinco parcelas recuperadas de Castelão da serra da Arrábida. Estão para chegar ao mercado quatro vinhos com a chancela Paraíso, cada um com o nome da parcela em causa, que tanto pode ser o nome do lugar onde está a vinha, o nome do proprietário ou o grau académico com que um dos proprietários é tratado nas redondezas. Ou seja, temos os vinhos Paraíso Doutor, Paraíso Murteira, Paraíso Esteves e Paraíso Esteves Vinhas Velhas.

Como é apanágio de Pedro Marques, estes são vinhos o mais artesanais possível, sem qualquer parafernália ou manipulação enológica, daí que estejam marcados por um carácter rústico, vegetal e até terroso. No caso do Paraíso Doutor, com um nível de acético que fará torcer o nariz a quem está habituado a tintos docinhos, amadeirados e fofos.

Fermentados todos com a técnica da maceração carbónica (coisa que liberta um perfil aromático muito primário das uvas), é curioso como duas vinhas de Castelão separadas por uma estrada de meia dúzia de metros dão vinhos completamente diferentes. Muito rústico o Doutor, com fruta delicada o Murteira. Quanto aos Paraíso Esteves, o primeiro, de vinha mais nova, com notas interessantes de morango, enquanto o da Parcela Velha se revelou o mais expressivo de todo o quarteto. Quanto a preços, os valores ainda não estão fechados, mas andarão num intervalo entre 30 e 50 euros, consoante as dimensões das parcelas (a menor tem 0,1 hectares, a maior, 0,5 hectares).

Portanto, a beleza deste novo projecto (um hectare e pouco de vinhas externas e 1,5 de vinha própria) reside em quatro factores: protecção de vinhas que estariam condenadas ao arranque; defesa e propagação de património vegetativo; recordação dos tintos de Castelão da serra da Arrábida; e recuperação de um certo conceito romântico para o sector do vinho, que, já agora, também precisa disso. Não seria bonito que mais gente copiasse esse modelo um pouco por todo o lado?

Não seria interessante que o país que mais vinhas velhas tem em todo o mundo fosse (também) por este caminho?


Terroir é um projecto digital do PÚBLICO dedicado ao vinho, com o apoio das 14 regiões vitivinícolas portuguesas, do Instituto da Vinha e do Vinho e da Andovi. A produção editorial é completamente independente destes apoios.

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