Este texto é sobre os vinhos Vale da Mata e o universo Rocim, mas façamos um ligeiro desvio por outro projecto da região de Lisboa, para um devido enquadramento. No final dos anos 1990, a Quinta do Monte d'Oiro foi um exemplo vitícola altamente científico. Para tratar dos solos, da vinha ou da enologia vieram os melhores do mundo porque isso era e é a maneira de ser de José Bento dos Santos, dono da quinta.
Em matéria de viticultura, optou-se, nos primeiros anos de produção das vinhas, por pura e simplesmente deitar para o chão as uvas, com o objectivo de desenvolver com maior robustez as videiras para as colheitas futuras. Isso não só nunca tinha sido praticado nas redondezas como justificou, numa igreja próxima, o sermão descabelado de um padre contra as ideias de Bento dos Santos, com o argumento de que se Deus dá não compete ao homem destruir.
Não somos de intrigas, mas suspeitamos de que se esse mesmo padre visse o que se está a praticar em Vale da Mata, em Cortes (Leiria), era bem capaz de encomendar as almas de Catarina Vieira, Pedro Ribeiro e do consultor de viticultura Amândio Cruz para um local de desterro, bastante sombrio e penoso. É que este trio resolveu, em Junho, com as plantas viçosas e cheias de cachos em modo de bago de ervilha, voltar a podar uma linha de vinha, destruindo toda a produção. Até a nós – que somos muito da ciência, mas com alguma dose romântica à mistura – doeu ver a coisa. Nas laterais estão linhas de vinha carregadas de cachos; no meio, uma linha de vinha em modo de luto.
Agora, mais a sério. Esta segunda poda na vinha dá pelo nome inglês de crop forcing e tem por objectivo impedir que a maturação das uvas ocorra nos meses mais quentes do ano (Julho e Agosto), resultando daqui vinhos demasiado alcoólicos e pesados. Neste sentido, ao podar-se a vinha em Junho, a maturação das uvas vai ocorrer em meses com menos calor (Outubro ou Novembro). Donde, com menor nível de açúcares nos bagos, mais acidez e pH mais baixo, os vinhos serão mais frescos.
Quando os Verões são cada vez mais radicais e quando a tendência de consumo a nível mundial pede vinhos com menos álcool e mais leves, a técnica do crop forcing pode ser interessante. Dizemos “pode ser” porque, em rigor, esta é uma abordagem tão recente que não se podem tirar ainda conclusões categóricas.
Por cá, quem está bastante empenhado nesta técnica é o grupo Symington, que, de resto, ainda anda à procura do calendário preciso para a marcação da segunda poda no mês de Junho. É que se as temperaturas mais baixas de Outubro/Novembro podem ser amigas para baixar álcool (2,5 pontos percentuais a menos de álcool na Touriga Nacional do Douro) e introduzir frescura na garrafa, as chuvas do Outono não serão certamente uma benesse. Seja como for, a engenharia serve para isso mesmo: testar e resolver problemas. Nem tudo está perdido.
Vale da Mata é um projecto micro e romântico no universo Rocim. Se na Vidigueira são 120 hectares, em Cortes, nos contrafortes das serras de Aire e Candeeiros, são 4 hectares (3,2 com as castas Tinta Roriz e Touriga Nacional e 0,8 com Arinto e Vital e Viosinho). Deste pedaço de terra saem vinhos que há vários anos chamam a atenção para um território quase desconhecido da região de Lisboa.
De início, os vinhos Vale da Mata seguiam uma matriz clássica. Isto é, cuidado com a viticultura (sempre), mas com procedimentos enológicos de época, com destaque para fermentações prolongadas nos tintos e uso de barricas novas. Hoje, a escola é outra e vem com o ar dos tempos. Ou seja, pretende revelar a identidade do território, respeitar ao máximo o carácter primário das uvas e regressar a práticas enológicas antigas. No fundo, mostrar um carácter mais puro do vinho, coisa que não se pode confundir – longe disso – com zero intervenção. Como se consegue isso? Bom, entre outras coisas, recorrendo a cubas de cimento e madeiras de estágio ou de fermentação com vários usos. Os consumidores que gostam de vinhos não mascarados pelas barricas agradecem.
Nome Vale da Mata Branco 23
Produtor Rocim
Castas Arinto, Vital e Viosinho
Região Lisboa
Grau alcoólico 12,5% vol.
Preço (euros) 11
Pontuação 91
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova De um trio de castas que só podia aparecer na região de Lisboa (por causa da Vital) sai um branco com notas cítricas e mineralidade. Tudo num registo delicado. Na boca, grande finura, ligeira sensação doce e a acidez que faz prolongar os sabores.
Nome Vale da Mata Tinto 23
Produtor Rocim
Castas Touriga Nacional e Tinta Roriz
Região Lisboa
Grau alcoólico 13% vol.
Preço (euros) 11
Pontuação 93
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova A frescura do vinho começa logo no nariz com os aromas balsâmicos (eucalipto), frutos vermelhos e algum floral típico da Touriga Nacional. Na boca, a Tinta Roriz dá muita frescura e alma ao vinho. Um tinto tão jovem quanto desafiante à mesa.
Nome Vale da Mata Reserva Tinto 21
Produtor Rocim
Castas Touriga Nacional e Tinta Roriz
Região Lisboa
Grau alcoólico 14% vol.
Preço (euros) 26
Pontuação 92
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Aqui sente-se a preponderância da Touriga Nacional e um carácter mais sério. Há sempre notas a fazer lembrar eucalipto ou caruma, com certos aromas de café. A boca, mais volumosa do que no colheita de 2023, revela certas notas vegetais. Talvez seja mais cosmopolita, não dizemos que não, mas apreciamos mais o irmão colheita. Questões de gosto, só isso.