Biblioteca Municipal Irene Lisboa: Há muitas formas de ler

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Uma biblioteca dedicada à autora Irene Lisboa João da Silva
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“Se eu pudesse havia de transformar as palavras em clava. | Havia de escrever rijamente. | Cada palavra seca, irressonante, sem música. | Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria. | Para quê todo este artifício da composição sintáctica e métrica? | Para quê o arredondado linguístico?”
Irene Lisboa, Um dia e outro dia… Outono havias de vir

Lê-se no Guia Prático da Bruxa d’Arruda, um dos livros que me foi ofertado por Paulo Câmara, o bibliotecário que me recebeu na Biblioteca Municipal Irene Lisboa: “Arruda: Um vaso de Arruda à entrada da porta do lado esquerdo afasta as bruxas e o mau-olhado. As cabeças de 5 quinas são igualmente eficazes contra o mau-olhado.” Nesta obra, editada pelo município de Arruda dos Vinhos, encontramos “rezas, benzeduras, mezinhas, provérbios e outros espécimes da tradição oral de Arruda dos Vinhos”. Para conhecimento, partilho um provérbio: “Venha homem de onde vier, chega a Arruda e encontra mulher.” E ainda uma reza para afastar as bruxas: “Tu és de ferro e eu sou aço, Foge diabo que te embaço.”

Uma interessante homenagem às tradições, práticas e costumes ancestrais dos habitantes de Arruda dos Vinhos.

— Qual a importância do fundo local nesta biblioteca, Paulo?

— É muito grande! Nós apostamos muito na questão do fundo local e em tudo aquilo que diga respeito ao concelho. Temos, numa secção à parte, mas também disponível online, documentos relativos a Arruda dos Vinhos, aos autores locais e aos temas locais. Na minha opinião, o fundo local é o que distingue uma biblioteca de outra, porque colecção todos nós temos. Todas as bibliotecas possuem enciclopédias, livros científicos, romances e literatura. Porém, o que pode distinguir uma biblioteca pública de outra é o seu fundo local, ou seja, tudo aquilo que diz respeito à terra e ao seu território. E, neste contexto, destaco o fundo de Irene Lisboa, que está também digitalizado, e que além da sua obra, tem também tudo o que é literatura secundária sobre ela, como teses de mestrado, artigos, fotografias, e outros escritos.

— Fale-me um pouco dela.

— Irene Lisboa nasceu aqui neste concelho, em 1892, e foi uma figura de proa na primeira metade do século XX. Infelizmente, não é estudada tanto quanto nós gostaríamos, mas é uma figura importante e estudada pela sua diversidade. Ela escreveu crónicas, novelas e poesia e dedicou-se muito à educação e aos ensaios. É a fundadora, digamos assim, daquilo que corresponde atualmente aos jardins de infância, em Portugal. Portanto, é uma mulher muito à frente do seu tempo. Nós tentamos inovar e seguir um pouco os passos dela num tempo que é completamente diferente, mas, obviamente, que temos muitas atividades relacionadas com ela ao longo do ano.

O excerto que citei no início desta crónica foi sugerido por Paulo Câmara, profundo conhecedor da obra de Irene Lisboa.

Partilho-o por inteiro:

“Escrever
Se eu pudesse havia de transformar as palavras em clava. Havia de escrever rijamente.
Cada palavra seca, irressonante, sem música.
Como um gesto, uma pancada brusca e sóbria.
Para quê todo este artifício da composição sintáctica e métrica?
Para quê o arredondado linguístico?
Gostava de atirar palavras.
Rápidas, secas e bárbaras, pedradas!
Sentidos próprios em tudo.
Amo? Amo ou não amo.
Vejo, admiro, desejo?
Ou sim ou não.
E como isto continuando.

E gostava para as infinitamente delicadas coisas do espírito...
Quais, mas quais?
Gostava, em oposição com a braveza do jogo da pedrada, do tal ataque às coisas certas e negadas...
Gostava de escrever com um fio de água.
Um fio que nada traçasse.
Fino e sem cor, medroso.

Ó infinitamente delicadas coisas do espírito!
Amor que se não tem, se julga ter.
Desejo dispersivo.
Vagos sofrimentos.
Ideias sem contorno.
Apreços e gostos fugitivos.
Ai! o fio da água, o próprio fio da água sobre vós passaria, transparentemente?
Ou vos seguiria humilde e tranquilo?”

A Biblioteca Municipal Irene Lisboa situa-se no magnífico Palácio do Morgado, um solar setecentista de fachada aristocrática, rodeado de amplos jardins e onde não falta sequer uma capela. O edifício sofreu diversas obras de requalificação entre 2001 e 2007. Retomo a conversa com Paulo Câmara sobre o funcionamento da biblioteca:

— A biblioteca sempre foi no Palácio do Morgado?

— Não, está aqui desde 2005, já tinha funcionado noutros dois locais.

— E muito mudou desde então?

— Sem dúvida! A dinâmica das bibliotecas e a narrativa das bibliotecas tem vindo a mudar muito ao longo dos tempos, porque as bibliotecas têm de se atualizar e adaptar aos tempos. A vinda das pessoas às bibliotecas era algo muito individual e os próprios leitores também mudaram. As pessoas vinham naquela introspeção de estarem num espaço agradável a ler um livro, uma crónica ou o jornal. Neste momento, já não é assim, e as bibliotecas são cada vez mais espaços sociais, de sociabilização, bem-estar, conforto e interação. E a ideia é que as bibliotecas possam ser isso tudo. São guardiãs de memórias, têm de ter os seus fundos documentais, mas são também espaços que acolhem palestras e ações de formação, ou seja, podem ser muita coisa. E cada vez mais é isso que as pessoas procuram e é isso também que nós tentamos promover aqui com uma agenda cultural que é trimestral e que não é só da biblioteca, mas de toda a unidade orgânica na qual nós estamos inseridos. As atividades que a biblioteca propõe perfilam-se nas atividades da unidade orgânica. Nós temos de trabalhar em parceria uns com os outros. Estamos a falar de um concelho territorialmente pequeno, com 78 quilómetros quadrados e 15 mil habitantes. Ou seja, a cultura aqui tem de funcionar de uma forma coesa, e para isso reunimos os técnicos responsáveis pelas várias áreas e realizamos uma programação conjunta. Claro que a biblioteca tem o seu foco particular e as suas atividades, mas de qualquer modo, ela está integrada num serviço maior. A ideia é promover uma boa contaminação de atividades, digamos assim, em que a literatura, a música, o teatro e a própria formação estão integradas e interligadas.

— E tem funcionado?

— Creio que sim. Queremos contagiar os outros com a vontade de lerem, de virem à biblioteca e de pedirem ajuda às pessoas que trabalham na biblioteca, seja para o que for, porque nós temos de abrir os horizontes. E não estamos só a falar de empréstimos de livros. Atualmente, o empréstimo de livros é algo bastante residual, tendo em conta as ofertas que existem por aí, não é? Portanto, ao fim ao cabo, queremos ajudar as pessoas a fazerem tudo. E esse ‘tudo’ inclui até ajudá-las a preencherem um formulário ou a fazerem o IRS, como já aconteceu. As pessoas vêm pedir ajuda, por exemplo, as mais velhas que querem aprender a enviar um e-mail. Nós tentamos, na medida do possível, ir ao encontro das necessidades de todo o tipo de leitores. E para nós, leitores não têm de ser apenas pessoas que leem livros. Há muitas formas de ler.

“Há muitas formas de ler.”

As bibliotecas oferecem atualmente uma grande variedade de leituras, permitindo que cada pessoa explore e amplie os seus horizontes.

Finalizo esta viagem por 18 bibliotecas com um dos meus poemas preferidos de Irene Lisboa.

“Nova, nova, nova, nova!
Não era a minha alma que eu queria ter.
Esta alma já feita, com seu toque de sofrimento e de resignação, sem pureza nem afoiteza.
Queria ter uma alma nova.
Decidida, capaz de tudo ousar.
Nunca esta que tanto conheço, compassiva, torturada, de trazer por casa.
A alma que eu queria e devia ter...
Era uma alma asselvajada, impoluta, nova, nova, nova, nova!”

Assim foi.

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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