Um CD para extraterrestre ver
Sobre o texto “Um milhão de mensagens para ET”, da autoria de Francisca Gorjão Henriques, publicado no primeiro caderno do PÚBLICO a 15 de Janeiro de 1997.
Há duas semanas, a agência espacial norte-americana resolveu chatear os extraterrestres com a emissão de uma música para o espaço. The Rain de Missy Elliott percorreu em menos tempo os 254 milhões de quilómetros até Vénus do que um habitante de Santa Maria da Feira demora a chegar a Leça do Balio, numa velocidade que faz inveja a um qualquer rapper que, só mesmo por amor, circula às oito da manhã no IC19.
Não é muito comum a NASA andar a chatear o juízo de seres que têm a sorte de não viver num planeta em que parte da população passa as tardes de domingo a ver uma sucessão de interpretações populares em playback, intervaladas por sucessivos apelos para a realização de chamadas de valor acrescentado, mas já não é a primeira vez que uma agência espacial tenta deixar mensagens para seres de outro planeta.
Não é que, aparentemente, os extraterrestres se mostrem particularmente interessados no que se passa a uma Unidade Astronómica de distância da estrela a que a gente chama de Sol. Minto. Pelo registo de avistamentos de objectos voadores não identificados, os seres que habitam fora da Terra sentem-se particularmente atraídos pelo pedaço de terra que vai da fronteira norte do México até à fronteira sul do Canadá. Os Estados Unidos podem não ser o destino que mais turistas recebem anualmente – em 2023 ficaram atrás de França e Espanha –, mas nos seres de outro mundo batem todos os recordes de visitantes. Quem é que mandou o Henry Thomas ter tratado tão bem o pequeno ET no filme do Spielberg?
“Alguma vez mandou uma mensagem para um extraterrestre?”: a provocadora pergunta com que Francisca Gorjão Henriques abre, em 1997, uma peça sobre a missão Cassini–Huygens chama logo a atenção. Em termos de dificuldade, envolver as pessoas na ciência é capaz de estar entre os maiores desafios da humanidade, logo a seguir a convencê-las a pagar por jornalismo.
Em 1997, o desafio era escrever numa plataforma da internet uma mensagem ou fazer um desenho para extraterrestre ver. Isto, claro, se o ET tivesse, cumulativamente, olhos, uma aparelhagem ou um computador capaz de ler um CD-ROM e ainda percebesse alguma coisa de alguma das sete mil línguas que os humanos usam para comunicar uns com os outros. Pelo sim, pelo não, teria gravado também algumas mensagens numa disquete, não fossem as novidades tecnológicas chegarem com atraso a Titã, a lua de Saturno onde Huygens chegou em 2005, também ela com um ligeiro atraso face ao inicialmente previsto.
Nota-se nas pequenas coisas como o mundo mudou em menos de três décadas: “Não há qualquer tipo de censura [nas mensagens a enviar]. Presumimos que as pessoas são inteligentes”, dizia o italiano Franco Bonacina, da Agência Espacial Europeia (ESA). A crença na boa-fé da humanidade é, aos olhos de hoje, especialmente incrível. Para a história fica a mensagem de um português: “Arranjem-me um emprego em Titã.” Como tem de haver um de nós em todo o lado, mal seria se um extraterrestre chegasse primeiro do que um português a este satélite natural de Saturno.
Já o desabafo vem de quem não acredita em vida extraterrestre a uma distância tão curta da Terra: “Temos dúvidas que algum extraterrestre vá ler alguma coisa!”, até porque, dizia então Franco Bonacina, o objectivo é apenas “dar a cada um a possibilidade de dar algo de si a esta missão”. Para consolar os que achavam que escrever 500 caracteres para o espaço seria um esforço em vão, “daqui a uns 300 anos, Titã pode ser um local turístico e os turistas podem descobrir o CD”, acreditava o responsável de comunicação da ESA. Era bom, mas o fim da missão espacial – que, diga-se, foi extraordinariamente bem-sucedida – aconteceu, a 15 de Setembro de 2017, com um embate programado do orbitador Cassini em direcção à atmosfera de Saturno, transformado em pó o que restava. Os extraterrestres podem não ter um computador que leia CD-ROM, mas agora é esperar que consigam ler os ficheiros na cloud.
O P2 Verão mergulha no arquivo do PÚBLICO para recordar histórias de outros tempos