As reacções do “povo anónimo” sobre um comprimido azul
Sobre o texto “Eu não tomo nada disso”, da autoria de José Bento Amaro, publicado no primeiro caderno do PÚBLICO a 21 de Outubro de 2003.
Há três coisas nesta vida que não fazem falta nenhuma. Uma delas é chover no mar, a outra são os vox pop nos jornais e, aparentemente, o Viagra. Há, nos arquivos do PÚBLICO, uma história que combina dois deles. Em 2003, cinco anos depois da introdução do estimulante sexual masculino no mercado português, José Bento Amaro saiu à rua à procura de “reacções do povo anónimo” sobre o milagroso comprimido azul.
A primeira coisa a registar é que fazer perguntas aos portugueses – essa massa de gente homogénea que habita no extremo oeste da Europa – não acrescenta nada para além da noção de que as ruas são habitadas por proto-humoristas que não resistem a mandar uma graçola sobre a disfunção eréctil dos outros. Era bom que na vida, como na disfunção eréctil, rir fosse mesmo o melhor remédio, mas isso estragava o negócio das farmacêuticas e deixava os espectáculos de stand-up com mais procura do que as sessões de desenvolvimento pessoal que por aí agora abundam.
Começo pelo primeiro pseudo-humorista da Avenida da Liberdade: “O meu Viagra é outro… é o tinto. Olha pra este a perguntar-me se preciso de Viagra… Beba uns tintos e vai ver se resulta ou não.” Uma excelente resposta para uma pessoa que, aparentemente, não sofre de disfunção eréctil, mas que admite que a sua arma secreta é – dizem por aí – uma das melhores receitas para combater a ejaculação precoce.
Depois, o jornalista prefere falar com um homem com mais idade, mas o senhor não está para conversas e responde com uma pergunta: “Porque é que não vai perguntar isso [se usa Viagra] ao seu pai?” Uma simpática sugestão, mas que levanta imensos problemas de ordem deontológica, como devem imaginar. Aproveitando que não é todos os dias que se tem um jornalista à frente, um dos representantes do “povo anónimo” faz a sua sugestão de reportagem: “Vá mas é à Assembleia da República perguntar pelo nosso dinheiro.” Espero ainda vir a tempo de relembrar que, para isso, não é preciso perder tempo a ir ao Parlamento. Basta ter tempo e paciência para ler o Orçamento do Estado. Não é uma leitura de bolso, nem tem a mesma graça da escrita de Gabriel García Márquez, mas pelo menos já dá para ficar a saber para onde vai “o nosso dinheiro”.
No caminho há sempre um homem com medo de qualquer coisa que possa afectar a sua masculinidade: “Viagra o c…, traz cá a tua mulher, mais a tua mãe e as tuas irmãs e vais ver o que é bom.” A noção é coisa que não assiste a essa massa homogénea de portugueses comuns que expressam as suas opiniões com base num machismo que cheira a podre. Das duas, uma: ou o Viagra afinal não fazia falta nenhuma ou o jornalista fez um péssimo trabalho, porque não encontrou ninguém com conhecimento de causa.
Cansado de falar com homens, o repórter vai em busca de uma mulher que sirva de limpa-palato no meio da confusão de opiniões. Aparece uma que diz que o marido não precisa de fármacos para ser feliz, mas antevê um cenário trágico se tomasse esses comprimidos: “Dava cabo do mulherio todo lá do prédio… do mulherio e dos maridos delas.” Estou já a imaginar como divertidas seriam as reuniões de condomínio.
E nem sempre é fácil encontrar alguém com cabeça quando se vagueia pelas ruas em busca de opinião alheia, mas pelo menos dá para fazer um apontamento sobre a inflação no preço dos medicamentos. Em 2003, a caixa de quatro comprimidos de Viagra custava 32,70 euros, hoje já vai nos 37,46. Uns 14,5% de aumento para manter a esperança de que haja outras coisas que aumentam mais na vida.
O P2 Verão mergulha no arquivo do PÚBLICO para recordar histórias de outros tempos.