Podemos colecionar tudo?

É irrelevante a utilidade de uma coleção. É uma daquelas vontades que se inscreve na natureza da falta, mas que em nada está relacionada com uma necessidade real.

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"Talvez haja quem colecione pessoas por achar que assim consegue fixá-las, controlá-las, retê-las" Ilustração: Rita Lagarto
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Há coleções para todos os gostos.

Há quem colecione canetas, canecas, bilhetes de cinema e de teatro, porta chaves, figuras de anime, posters, capas de revistas, patos de borracha, carrinhos de brincar, carros a sério, ímanes de frigorífico, cadeados, talheres, moedas antigas, miniaturas de perfumes, latas de refrigerantes… Há colecionadores abonados, que colecionam as obras de arte mais caras do mundo, adquirindo para si relíquias intemporais, numa negociação sempre estreita entre a filantropia e o lucro, entre benfeitoria e o exibicionismo. Há quem colecione livros que nunca vai ler (uma estante cheia de livros deslumbra sempre, mas uma coleção de lombadas por abrir amontoados na estante, por vezes acumula mais pó do que conhecimento), e há ainda coleções de botões, de canivetes, de abre-latas, de cabelos de pessoas famosas, de coçadores de costas, de sapatos sem par. Parece que podemos colecionar tudo!

Online podemos encontrar uma oferta surpreendente de taxidermia: insetos conservados em resina, aves embalsamadas, répteis de vários tipos, cabeças de alce, animais de grande porte empalhados… O método de preservação de animais navega a excêntrica fronteira entre o colecionismo e o estudo científico, e reúne inúmeras coleções, numa espécie de fascínio por conservar na morte, como se isso permitisse fixar a vida, retê-la, controlá-la, mesmo quando o objeto se trata só de uma carapaça, sem vitalidade nem alma.

E é espantosa a quantidade de colecionadores adultos que colecionam afetuosamente objetos infantis: peluches, legos, berlindes… Comprando e catalogando lembranças da infância, a inventariar recordações, como que a conservar a sua condição de criança que manuseia um mundo em miniatura, a guardar as saudades num armário especial.

É irrelevante a utilidade de uma coleção. Ninguém precisa de possuir, por exemplo, centenas de caricas de várias nacionalidades e feitios. É uma daquelas vontades que se inscreve na natureza da falta, mas que em nada está relacionada com uma necessidade real. Se perguntarmos a um colecionador porque reúne tantos objetos da mesma categoria ele provavelmente irá responder que é um gosto, uma mania, um apetite. E nunca acaba. Há sempre uma peça, uma preciosidade por adquirir. A coleção alimenta-se de nostalgia – e a nostalgia provoca mais fome do que saciamento, ocupa e liberta um espaço que falta sempre preencher.

Acho sempre que cada coleção é uma espécie de repertório arqueológico do seu colecionador, e os objetos de predileção uma espécie de extensão do seu criador, de apêndices mais ou menos caprichosos, dos seus desejos e manias, das obsessões e das paixões. As peças além de conservadas, são organizadas e catalogadas, para que o colecionador não se esqueça de nenhuma — ou talvez para que nenhuma das peças se esqueça dele, como se as coleções pudessem ser um amuleto contra o esquecimento. Não raramente são um espólio sem valor material, mas carregado de valor sentimental.

Certa vez, quando era criança decidi fazer uma coleção de caracóis. Vivos. Descobri que havia cremes para o rosto feitos de muco de caracol e achei que podia possuir o meu próprio império cosmético caseiro. O pensamento mágico faz-nos crer que podemos colecionar tudo. Como vivia no campo sequestrei uns quantos moluscos de várias cores e tamanhos do seu habitat natural. E como se tratava de uma coleção confidencial, escondi-os num recanto secreto entre a parede e o móvel da televisão da sala de jantar. É indescritível o viscoso resultado entre a mistura de cabos elétricos, bibelots de decoração com pot-pourri, e caracóis insurgentes numa rebelião proletária a subir pelas paredes. Numa lição de biologia instantânea percebi que os caracóis são mais rápidos e ardilosos do que eu imaginava. Fiquei de castigo. Terminaram por ali as minhas aspirações ao empreendedorismo e ao colecionismo.

E só há bem pouco tempo, voltei a pensar nesta coisa das coleções quando uma amiga me mostrou um baú cheio de moedas antigas, que estavam guardadas com a família há alguns anos e eu me apressei-me a espreitar com ela o valor de cada uma das relíquias que tinha em caixa. Eram dezenas de moedas, e de acordo com a minha breve pesquisa no Google, feita com o entusiasmo sôfrego de uma coletora de moluscos, as imagens das moedas eram todas altamente compatíveis com resultados muitíssimo promissores, ela estava nem mais nem menos: milionária! Ofereci-me a ir com ela a uma loja de numismática, e fizemos desse dia uma espécie de marco histórico: vestimo-nos a rigor, estacionámos na zona castanha da Emel sem fazer cálculos das horas, bebemos uma bica numa esplanada com a ementa em inglês daquelas que só os turistas americanos e os nómadas digitais frequentam, deixámos uma gorjeta de pré-magnatas, e apesar de não termos marcado avaliação das moedas na numismática, fizemos pressão para sermos atendidas, era uma questão de vida ou morte, um caso de fortuna urgente! (Afinal não é todos os dias que se entra numa loja do Saldanha com um baú e se sai multimilionária). O avaliador deteve-se pelo menos meio segundo sobre as moedas — teve a amabilidade de tentar não nos envergonhar. Eram todas falsas. Uma coleção de pechisbeque. “Podem dar a crianças, para eles brincarem.” Demos um aperto de mão ao senhor, despedimo-nos com nomes falsos cunhados pelo embaraço, e corremos dali para fora para ir tirar o carro do estacionamento.

Definitivamente, coleções… não são para mim.

Conheço uma pessoa que coleciona viagens. Acumula visitas a lugares diversos, itinerários turísticos, excursões e pacotes de férias com a destreza (económica e de mobilidade) de quem coleciona pacotes de açúcar do café, o que ao início me provocou uma espécie de desconforto que deduzi que fosse por inveja. Não conseguia deixar de sentir uma espécie de incómodo sempre que a via chegar carregada de pequenos souvenirs, e de me encolher enquanto ela me exibia desinteressadamente as imagens que arrastava no ecrã luminoso do telemóvel, uma atrás da outra: “Osaka - Japão; Taj Mahal - Índia; Teotihuacán - México…” Registava os lugares e as viagens, como se estivesse a preencher uma caderneta de cromos, a completar um catálogo de carimbos no passaporte. “Já está. Visto. Feito. Próximo!” Aquilo causava-me inquietação porque ficava sempre com a sensação de que estava nos lugares sem nunca os ocupar, sem se abeirar da alma das pessoas. Como se os destinos e os seus habitantes permanecessem só empalhados e embalsamados nas fotografias luminosas. E ela empanturrada, mas não saciada, a colecionadora de viagens. Ainda assim, não descartei a hipótese de que ela possa fazer parte da minha coleção de pequenas invejas.

Pode colecionar-se tudo?

Ele mostra-me o ecrã, a montra, no telemóvel:

— Tenho este… E este. Ah! E mais este…

Tem uma coleção de pretendentes, de interessados, de pessoas compatíveis. Desliza o dedo na lista, tem uns quantos em carteira. Uma espécie de catálogo. No Tinder. No Bumble. No OkCupid. No Badoo… As aplicações têm todas nomes de pastilhas elásticas. Lembro-me das pastilhas Bubblicious. Recordo-me que fiz uma coleção não-oficial de Bubblicious no tampo da secretária da escola, que também me valeu um castigo da professora.

— Não gostavas de experimentar?

Engelho o nariz. Eu nunca fui dada a coleções. Falta de prática. Falta de jeito. Preguiça. Ou então foi a história dos caracóis. Ainda me enternece. Tenho a imagem vívida de um deles que tentou escapar e ficou eletrocutado nos buraquinhos da tomada. As antenas todas esturricadas.

Tento explicar-lhe que os encontros é uma daquelas coisas que se inscrevem na natureza da falta, mas que em nada está relacionada com uma necessidade real.

Ele insiste. Fala-me da nossa amiga que casou com o parceiro que conheceu online, daquele outro que está tão feliz, dos outros dois que se tinham apaixonado ao primeiro chat… Na fronteira entre o fascínio e o estudo científico, fala-me de romances facilitados digitalmente, das negociações, dos benefícios lucrativos dos casos, uma espécie de regime simplificado do amor, agilizado numa avaliação rápida sobre a fotografia: itens altamente compatíveis com resultados muitíssimo promissores.

— E tu? Estás a gostar? —, pergunto-lhe.

— Desta vez foi diferente. Conversámos a noite toda e agora… Puf … Desapareceu —, diz-me como uma criança que perdeu o brinquedo favorito. Num misto de nostalgia e incompreensão.

Foi sequestrado. Para uma coleção. Colecionado. Manipulado. Manuseado. Arrumado. Como uma cabeça de alce na parede. “Já está. Visto. Feito. Próximo!”

Pode colecionar-se tudo?

Talvez haja quem colecione pessoas por achar que assim consegue fixá-las, controlá-las, retê-las. Para conservar a condição de criança que manuseia um mundo em miniatura, as pessoas em miniatura que se adquirem e catalogam, que se reduzem a uma fotografia empalhada no telemóvel, a um souvenir de mensagens no chat. Sem se aperceberem que provavelmente estão a reunir um espólio de vazios, uma coleção de solidão. Daquelas que provocam mais fome do que saciamento. Uma coleção de solidão é ardilosa. Ocupa e liberta um espaço que falta sempre preencher.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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