Autocarros: meio cheios ou meio vazios?

Quando somos os únicos — ou dos poucos — no autocarro, a cidade é toda para nós. Tudo bem que a partilhamos com os outros, mas ela pertence-nos.

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Um copo pode estar meio cheio ou meio vazio. O juízo só depende de nós e da nossa forma de estar e ver o mundo.

Com os autocarros acontece um fenómeno ligeiramente diferente porque, note-se, há autocarros apinhados de gente e outros que não transportam mais do que três almas esquecidas. Mesmo assim, a experiência que retiramos de um trajecto de autocarro também depende da forma como a escolhemos abordar — de trombas e com ar de poucos amigos ou com um sorriso na cara, levemente ingénuo, roubado a uma qualquer personagem de um filme de Woody Allen (dos antigos).

Romantizar estes momentos do dia-a-dia não devia constituir um privilégio de classe, mas já sabemos que, por estes lados, os transportes públicos não representam um destino final, mas apenas uma parte do percurso, que se quer de vitória.

À partida, as pessoas mais despreocupadas usam estes momentos para proveito próprio, sobretudo quando os autocarros seguem praticamente vazios: mal entram, escolhem um assento, encostam-se, e abstraem-se, começando a criar planos na sua cabeça, que podem ser fidedignos ou impossíveis. Pelo contrário, quem está preocupado com a vida que leva não pensa na criação de outras, ainda que tenha muita vontade de fugir daquela que tem.

Agora que o Verão está a fazer das suas — e as pessoas gozam as férias, aproveitando para, numa ou noutra vez, gozarem com os patrões —, os autocarros mostram-se particularmente vazios, o que não significa que estejam com menos vida. Também por isto devia ser verão o ano inteiro. Depois de meses marcados por chatices, preocupações e tensões de todos os tipos, é justo beneficiarmos de autocarros só para nós, onde nos podemos deixar estar (quase como se estivéssemos em casa), enquanto assistimos à queda do dia, que transforma as cidades em obras impressionistas, dominadas por tons cor de laranja e violeta.

Quando somos os únicos — ou dos poucos — no autocarro, a cidade é toda para nós. Tudo bem que a partilhamos com os outros, mas ela pertence-nos. Não a exigimos, nem a reclamamos para nós, mas ela apresenta-se desse modo, sem que nos peça algo em troca. Podemos aproveitá-la (até à chegada da noite e das suas promessas citadinas), ou ignorar o episódio urbano, que se reproduz demoradamente no nosso campo de visão, que é delimitado por um enorme e fresco vidro que separa o autocarro da cidade.

Quase sempre, escolhemos consumi-la, porque momentos destes são raros, e porque procuramos constantemente um certo tipo de paz, próprio das existências mais românticas, que se revelam ao entardecer, entre músicas preferidas (de Blood Orange a Chet Baker; só depende da nossa disposição), barulhos mecânicos oriundos da ponta do autocarro e gritos veranis da cidade despida e fresca.

Nestes fins de tarde, andar de autocarro é um quase luxo. É uma oportunidade para recomeçar. E também para fechar os olhos. É de olhos fechados que vemos as cidades que habitamos.

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