Biblioteca Municipal de Ponte de Lima: “Sempre vi os meus pais a ler e imitava-os”

É um edifício do século XVII de elevado valor histórico e patrimonial, onde primitivamente, funcionou o Hospital da Santa Casa da Misericórdia e posteriormente o quartel da GNR.

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"Descobri Daniel Simões, 18 anos, com a cara tapada por um livro de banda desenhada" João da Silva
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"Voltei-me de repente. Tinha em frente a mim uma mulher vestida de preto, e com um florete em punho apontado para o meu peito. Era alta e magra. Trazia o rosto completamente escondido numa comprida máscara de pano encarnado e a sua cabeça descoberta era absolutamente calva."
António Feijó, Os Carecas de Ponte de Lima

De uma das janelas da Biblioteca Municipal de Ponte de Lima, demorei-me a observar o rio Lima, que flui a pouco mais de uma centena de metros. É, seguramente, um dos locais de trabalho com a vista mais bonita que já conheci. "É um privilégio. Não só adoro o que faço, como ainda tenho esta vista maravilhosa", partilhou Júlia Carvalho, bibliotecária. Explique-me o que se vê. "Além do rio Lima, vê-se a Ponte Medieval e a Ponte Romana, e uma torre a que nós chamamos de Santo António da Torre Velha, onde está a Capela de Arcozelo. Aquela zona ali, do lado de lá da ponte, já não pertence à vila de Ponte de Lima, já é Arcozelo. Depois, vêem-se também os museus do Brinquedo e do Território e o parque temático do Arnado." Foi uma visita guiada sem sair daqui, Júlia.

Conhece bem a terra? "Se conheço! Sou daqui desde sempre, nascida e criada aqui nesta rua." E já é longa a sua história aqui na biblioteca? "Sim, trabalho aqui há 33 anos. Fui uma das pessoas que iniciou a biblioteca, que era um depósito de livros ali na torre, onde o chão era em terra. Então, eu e outra colega, a Rosinda, que neste momento está no arquivo, começámos por limpar os livros. Uma grande parte deles tinha sido cedida pela Fundação Calouste Gulbenkian. Começámos por limpá-los, catalogá-los e tratá-los. Trouxemos para aqui os livros posteriores a 1940, enquanto os anteriores ficaram num depósito. E pronto, foi o começo. Entretanto, foram colocadas aqui as estantes e os livros e começámos também a catalogar os novos. A biblioteca foi inaugurada em 1993, mas este trabalho começou em finais de 1991, início de 1992." E gosta desta vida em torno dos livros? "Ah, gosto muito! Tem sido uma vida ótima. Gosto muito da parte de catalogar. Às vezes até demoro mais um bocadinho, porque gosto muito de ler, principalmente os livros mais antigos e, mais ainda, sobre Ponte de Lima. Sou apaixonada pela minha terra."

O espaço onde se situa a Biblioteca Municipal de Ponte de Lima é um edifício do século XVII de elevado valor histórico e patrimonial, onde primitivamente, funcionou o Hospital da Santa Casa da Misericórdia e posteriormente o quartel da GNR. Encostado a um trecho da muralha, há um acesso ao caminho no topo da muralha a partir de uma varanda coberta, voltada para o Largo da Picota. Foi nessa varanda que li Os carecas de Ponte de Lima, obra de António Feijó que reflete uma brincadeira do diplomata e poeta — nascido na vila de Ponte de Lima em 1 de junho de 1859 —, transformada em património cultural imaterial. Com 112 páginas, o livro sugerido por Ana Carneiro, diretora da Biblioteca Municipal de Ponte de Lima, relembra uma narrativa inventada em 1880, que criou alvoroço entre os habitantes da vila ao imaginar uma quadrilha de carecas a cometer crimes nos arredores da cidade.

Feijó, então estudante de Direito em Coimbra, escreveu esta história para o jornal Comércio do Lima –— o trecho que inicia esta crónica pertence à notícia original. A narrativa, popularmente conhecida como "O mistério da estrada de Ponte de Lima" ou "A história dos carecas de Faldejães", rapidamente assumiu ares de realidade e ganhou notoriedade na imprensa do Norte. O próprio António Feijó admitiu, em carta enviada ao amigo João Gomes de Abreu de Lima, mais de 30 anos depois dos acontecimentos, que, a certa altura, ele mesmo — apesar de ser o criador da história — começou a acreditar na sua veracidade.

Eis o excerto em que o autor partilha a confusão momentânea que sentiu: "Todos os nossos patrícios, ou quase todos, entre os quais não faltavam homens de talento e ilustração, acreditaram piamente na autenticidade dos Carecas; mesmo os raros que fugiam de espíritos fortes referindo-se ao caso com desdenhoso sorriso, — à cautela não se deitavam sem verificar primeiro se as portas de casa estavam bem atrancadas... Eu próprio, que tinha inventado a história, cheguei num momento a ter hesitações; quase que me vi forçado a acreditar nela, como toda a gente —, tal era a atmosfera de credulidade, que se formou logo em torno do caso, e que se respirava por toda a parte. Não era absolutamente impossível que eu tivesse imaginado uma aventura que por acaso fosse... verdadeira. Dão-se às vezes coincidências de todo o ponto inconcebíveis."

Após a leitura do livro, fui conhecer o resto da biblioteca. Ana Carneiro falou-me do trabalho que desenvolvem: "A nossa missão é promover a educação, a cultura, a informação, o conhecimento e o lazer de modo tendencialmente gratuito e universal, contribuindo assim para elevar a qualidade de vida dos cidadãos. Temos estabelecido uma ligação de proximidade com a comunidade com o objetivo de alavancar o desenvolvimento social, a evolução das mentalidades e consolidar a consciência cívica dos cidadãos."

E como o fazem? "De variadíssimas formas, nomeadamente através de exposições para homenagear figuras proeminentes da região ou nacionais, como acontecerá com os 500 anos de Luís Vaz de Camões, ou para destacar autores locais e nacionais, exibindo as suas obras. Por outro lado, para os mais idosos, temos o projeto BiblioSénior, que promove a visita de várias instituições do concelho, oferecendo momentos de harmonia, cultura e lazer. Depois, oferecemos cursos de informática para adultos, com o intuito de aprimorar as suas competências digitais e promovemos a literacia digital para garantir a inclusão na sociedade da informação. Destaco ainda as parcerias estabelecidas com instituições que beneficiam pessoas com necessidades específicas. Neste contexto, implementámos o projeto ‘Biblioteca Inclusiva: Biblioteca para Todos’, com o propósito de garantir o acesso à cultura e à socialização desse público. E, por fim, não podemos esquecer os nossos eventos culturais, como a Feira do Livro de Ponte de Lima, em julho, e a Feira do Livro Limiano, em dezembro, em que promovemos as publicações de autores limianos que, por nascimento ou afeição, mantêm uma produção literária de proximidade e de pertinência temática e integra. E há muito mais…"

À passagem pela sala infantojuvenil, comentei que o espaço me parecia muito cuidado. "É bastante popular entre famílias e escolas e foi decorada com trabalhos realizados durante os programas para famílias e escolas que desenvolvemos e que têm muita procura e participação. Todos os sábados de manhã há atividades para famílias, como Jogar com Histórias, Oficinas Criativas, Robótica, e Bebéteca, e durante a semana dinamizamos o serviço educativo para as escolas, associações e instituições locais. As famílias saem daqui felizes, com boas memórias, o que nos deixa muito satisfeitos. Valorizamos muito a leitura e a interação com livros desde cedo, assim como a leitura de histórias, exploração de imagens e atividades em grupo. Isso é essencial para melhorar os níveis de literacia e transmitir valores importantes", explicou a bibliotecária.

Alguém duvida desta ideia? Partilho o exemplo de Daniel Simões, que descobri com a cara tapada por um livro de banda desenhada. "Tenho 18 anos e venho do Brasil. Estou cá há dois anos e desde o início venho à biblioteca. Não vivo aqui, mas sou de uma terra perto. Venho à biblioteca para ler, não para estudar. Gosto de livros de história, psicologia, banda desenhada", explicou, face ao chorrilho de perguntas com que lhe interrompi a leitura. Não satisfeito, prossegui o "interrogatório", perguntando se já tinha hábitos de leitura. "Sim, desde criança que gosto muito de ler. Comecei com banda desenhada e depois fui passando para outros tipos de livros." Os livros que lês em português de Portugal fazem muita diferença? "Ah, sim, há expressões e palavras diferentes." E quando não percebes, o que fazes, perguntas a alguém? "Ah, não, pesquiso no Google." O que queres fazer na vida? "Cozinhar. Estou no último ano do meu curso de cozinha." Os teus pais têm hábitos de leitura? "Sim, sempre vi os meus pais a ler e imitei-os."

E porque António Feijó era um notável poeta, finalizo com um poema da sua autoria sobre a sua amada terra natal.

É que nas terras que tenho visto,
Por toda a parte por onde andei,
Nunca achei nada mais imprevisto,
Terra mais linda nunca encontrei.

"Ilha dos Amores" (1897), em Poesias Completas

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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