Exames Nacionais 2024: escolhas múltiplas e falta de coerência

É possível obter 91 pontos em 200 na prova de Português ou 88 na de Filosofia respondendo apenas às escolhas múltiplas e não escrevendo uma única palavra.

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Enunciados da prova nacional de Português do 12º ano Rui Gaudêncio/Arquivo
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Na quinta-feira, o Governo anunciou que tem para apresentar um novo modelo de avaliação externa — exames e provas do 4.º ao 12.º ano. Não conseguindo antecipar inteiramente o que serão essas medidas, permito-me concretizar uma reflexão sobre os exames nacionais 2024, cujos resultados foram conhecidos nesta segunda-feira.

Começo por destacar o peso das escolhas múltiplas. Embora não tendo estendido esta análise à totalidade dos exames nacionais, verifica-se na amostra escolhida que as escolhas múltiplas ou itens de seleção conquistaram espaço na avaliação, em detrimento das respostas de construção (curtas, restritas ou extensas).

Bem sabemos que as escolhas múltiplas não são necessariamente fáceis. Algumas podem mesmo ser muito difíceis. E permitem a avaliação de múltiplas competências, desde a memorização até à análise e avaliação crítica. No entanto, importa olhar para a cotação e número destes itens nos exames, que se afigura como uma concorrência desleal à escrita, competência já tão desvalorizada pelos jovens.

Exame e Valores das Escolhas Múltiplas:

  • Matemática A: 12
  • História A: 14
  • Português: 13
  • Filosofia: 11
  • Física e Química: 10
  • Economia: 10
  • Biologia e Geologia: 8

O peso das escolhas múltiplas nas provas analisadas oscila entre oito e 14 pontos por item. E acresce que, na sequência da introdução de perguntas opcionais, devido ao "modelo Covid" de exames, os diferentes tipos de perguntas das provas (escolhas múltiplas ou respostas de construção), na sua maioria, passaram a apresentar ponderações semelhantes.

Considerando o número total de questões que o exame apresenta, esta ponderação é elevada e, desta forma, o fator sorte ou azar nestes itens não surge diluído. Por exemplo, no exame nacional de Português, falhar duas das escolhas múltiplas obrigatórias significa que, mesmo acertando em tudo o resto na prova, o aluno só pode alcançar 17,4 pontos. Esta situação dos itens opcionais leva ainda a que a produção de um texto expositivo ou uma escolha múltipla tenham precisamente o mesmo peso (os mesmos 13 pontos) e um deslize, uma dúvida, ou um impulso de último momento que fez um aluno mudar um item pode competir diretamente com um exercício de escrita complexo e moroso. Por outro lado, esta valorização dos itens de escolha múltipla torna possível obter uma parte considerável da cotação apenas selecionando alíneas, caso o conhecimento ou a sorte do aluno estejam de feição.

Concretizando, é possível obter 91 pontos em 200 na prova de Português ou 88 na de Filosofia respondendo apenas às escolhas múltiplas e não escrevendo uma única palavra — curiosamente (ou não), o único dos exames consultados em que não há escolhas múltiplas neste jogo das opcionais é a prova de Matemática, onde, no entanto, é possível obter 48 pontos só respondendo a este tipo de perguntas.

Chamo a atenção para outro aspeto ainda mais evidente na disciplina de Português, a que melhor conheço, e que diz respeito à disparidade entre a leitura que é feita pelos manuais e pelas escolas dos conteúdos das aprendizagens essenciais (que funcionam como os programas das disciplinas) e o que é solicitado nos exames.

A mudança de paradigma da avaliação externa já se vem sentindo há alguns anos, com mudanças paulatinamente introduzidas na estrutura e tipo de questões dos exames. No entanto, creio que a introdução desta tendência mais abrangente de avaliação, que vai para além dos conteúdos e procura aferir competências, integrando os princípios do perfil do aluno à saída do ensino obrigatório (com o qual teoricamente não posso deixar de concordar), este ano, foi longe demais.

Assim, no exame de Português, a desilusão dos alunos (e de muitos professores) deveu-se ao facto de a prova parecer desvalorizar os conteúdos lecionados pela ausência de questões que fossem claramente fruto do estudo das obras e autores programáticos (e presentes nos manuais certificados e em qualquer dos calhamaços de preparação para exame disponíveis no mercado). Embora na referida prova até surgisse um poema de um autor das metas, Álvaro de Campos, a interpretação do texto não dependia diretamente do estudo aprofundado que a maioria das escolas desenvolveu em torno deste. E o poema podia ser de qualquer autor: Campos, Manuel Alegre ou Sophia. Da mesma forma, o texto do grupo de interpretação partia uma obra que não faz parte do programa (o que estava previsto nas informações exame), mas que apresentava uma visão de herói romântico contrastante com a visão clássica estudada em aula, o que contribui para a ideia que os alunos começam agora a verbalizar: não valia a pena ter estudado. Os professores sabem não ser inteiramente assim. Mas eles não. E muitos, estudantes e docentes, sentiram-se defraudados.

Em síntese, a avaliação externa parece estar pouco harmonizada com as aulas e manuais que continuam —​ baseados em lacunas ou na falta de explicitação do grau de aprofundamento do estudo de obras e autores nas aprendizagens essenciais — a dar particular protagonismo aos conteúdos. Assim, e olhando para os resultados dos exames nacionais deste ano tornados públicos, urge encontrar maior coerência entre as orientações, os materiais reconhecidos e os exames. Urge ainda refletir sobre a justiça de um modelo de exame, que presentemente é transversal às diferentes disciplinas, e que apresenta um número limitado de escolhas múltiplas com uma ponderação tão alta que dá espaço ao fator sorte e azar, criando injustiças e transmitindo uma falsa ideia de desvalorização da escrita.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Artigo corrigido, às 17h55, com alteração no valor das escolhas múltiplas do exame de Matemática A, de 14 para 12

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