Carta aberta aos autores da prova de Português do 9º ano
Esperança de que este agradecimento chegue até vós, de alguma forma.
Excelentíssimos Senhores
Venho, por este meio, agradecer a todos quantos (e acredito que tenham sido muitos) contribuíram para a elaboração da prova final de Português do 3.º ciclo. Ser professor nos dias de hoje já nos traz um reconhecimento tão grande que não precisávamos de mais motivação. Muito obrigada!
Obrigada:
- pelo tempo desperdiçado a preparar aulas e a procurar as estratégias mais interessantes e adequadas aos alunos;
- pelas dores de cabeça em conseguir cumprir um programa que sugere 30 autores portugueses e estrangeiros (só no 9.º ano, a acrescer os outros 65 do 7.º e 8.º anos), para, depois, colocarem um excerto dramático de uma autora que não consta por lá…
- pelo desperdício do esforço de implementar estratégias que levem os alunos a mobilizar pontos de vista e o espírito crítico, “de forma fundamentada”, como consta nas competências essenciais, para depois terem que optar por respostas impostas em questões de escolha múltipla, sem qualquer hipótese de dizer o que pensam, o que vêem, como sentem…
- pela frustração de ver frustradas as expectativas dos meus alunos que, como o herói que Camões elevou, não desistiram, não baixaram a cabeça e deram o seu melhor, enchendo de orgulho esta professora…
- pela rispidez com que se trata a identificação de recursos expressivos num texto ouvido duas vezes a fugir, num áudio de fraca qualidade. É que, sabem, ensino aos meus alunos que os recursos expressivos aos quais, antes, chamávamos “figuras de estilo” devem ser analisados cuidadosamente, dando importância a cada palavra, a cada ideia transmitida, e não numa corrida de vida ou morte, a tentar ouvir uma expressão, sem se descuidar do que vem a seguir…
- pela escolha extraordinária da estância da epopeia de Camões. De facto, de entre a Proposição, onde o sujeito poético define o seu propósito e o explica condignamente; o Consílio dos Deuses que dignifica os portugueses; as histórias de Vasco da Gama ao Rei de Melinde; o episódio de D. Pedro e Inês de Castro; a forma dolorosa como os portugueses se despediram das suas famílias e da sua pátria; a dificuldade em ultrapassar o Cabo das Tormentas; a tempestade que quase impediu a concretização do sonho; a chegada à Índia… de facto, de entre todos estes episódios, o seleccionado por vós é o que mais dignifica a obra camoniana. Além disso, é no 10.º ano que se exploram melhor as considerações finais do poeta e a dedicatória, pelo que tem toda a lógica colocar esta estância numa prova de 9.º ano…
- pela generosidade e excelente oportunidade que deram aos alunos, dando-lhes quatro itens em que apenas os dois com a “melhor pontuação” serão tidos em consideração. Só é pena é que sejam todos de escolha múltipla e com a mesma cotação. O que é, neste caso, a “melhor pontuação”?
- agradeço uma prova de 21 questões, sendo que 17 delas são de escolha múltipla. Os professores que vão corrigir provas agradecem!
- por fim, agradeço, mesmo, de forma sentida, o facto de me terem feito percorrer todo este caminho que, certamente, continuarei a trilhar no futuro. Promovi o debate, a troca de ideias, o espírito crítico, a capacidade de raciocinar, a capacidade de argumentar, de se posicionar, de sentir empatia, de se colocar no lugar das personagens e dos intervenientes, a vontade de ler, o orgulho pelos nossos poetas, o gosto pela escrita, a necessidade de perceber o funcionamento da língua para falar e escrever melhor, a beleza da conjugação das palavras, a importância de conhecer os estilos literários e os recursos usados para exprimir ideias e sentimentos de forma mais expressiva… cantei, dramatizei, escrevi como modelo; fiz o pino, rebolei, chorei, dancei… e cheguei aqui, sabendo que fiz bem, que contribuí…
Despeço-me, na esperança de que este agradecimento chegue até vós, de alguma forma.
Assinado: "Felicidade em professora"
P.S. Esqueci-me de perguntar: alguma vez já deram aulas?