Biblioteca Municipal de Monforte: “Vivo como se estivesse lendo um livro”
O cantinho dos adereços das histórias na Biblioteca Municipal de Monforte não é apenas colorido, é também mágico. Alguém duvida de que é magia o que acontece?
“Vivo cada dia como se estivesse lendo um livro! Passo a página, termino um capítulo, chego ao fim, guardo o livro e inicio outra história! Finda a leitura, fico com o essencial do enredo, mas deixo perder todos aqueles pormenores que não foram importantes para a construção da trama.”
Romarisa, À procura das raízes
“Posso fotografar a sua camisola?”, ouvi dizer em inglês, virando-me na direção de onde vinha a voz. “A sua camisola tem uma mensagem muito bonita, posso fotografá-la?”, repetiu uma senhora na casa dos 70. “Claro”, respondi. “De onde vêm?”, perguntei. “Eu e o meu marido somos do Kansas e estes dois casais nossos amigos são da Carolina do Norte”, respondeu, entusiasmada. Logo a seguir, um dos homens do grupo olhou para a pilha de livros e para o caderno aberto em cima da mesa onde eu estava a tomar o pequeno-almoço e perguntou-me o que fazia na vida. Expliquei que estava a realizar uma road-trip literária, o que suscitou um vendaval de entusiasmadas reações, cumprimentos, abraços, fotografias de grupo, publicações no Instagram, troca de contactos. Leitores vorazes, todos. O seu destino era Lisboa, onde esperavam encontrar alfarrabistas. Acalmei-lhes as expectativas, explicando que muitos tinham fechado, e indiquei-lhes onde ainda podiam encontrar alguns.
Vinte minutos depois da “cimeira literária” Portugal-Estados Unidos, estacionei o carro na Praça da República, em Monforte, vila do distrito de Portalegre com cerca de 1300 habitantes. São dez da manhã. A praça está deserta. “As pessoas estão a trabalhar”, pensei enquanto caminhava em direção à Biblioteca Municipal de Monforte.
— Isto aqui é calminho —, comentei.
— Pois, não há muita gente. É um paraíso para quem gosta de sossego —, explicou-me Vitória Medalhas, bibliotecária em Monforte há dez anos.
— Diga-me, Vitória, o que a motiva a trabalhar aqui?
— Servir a comunidade, estou aqui para as pessoas e para as chamar para a biblioteca. E para isso, peço-lhes que sugiram o que gostariam de ler ou o que precisam de ler, ou seja, tento satisfazer os utilizadores. Sou de Monforte, que é uma terra pequena, e conheço toda a gente, vou às escolas, sei do que os miúdos gostam de ler, de que clube são, essas coisas todas.
— Uma grande família…
— Sim, podemos dizer que sim. E é muito recompensador. Há pessoas que nunca liam e a quem eu dizia, ‘lê este livro que vais gostar’, e agora já vêm buscar livros e algumas até fazem parte do nosso clube de leitura, que existe há nove anos.
— Tem muita gente?
— Somos cerca de 20 e vem gente de todo o lado, até de Espanha, e de diversas faixas etárias, desde os 30 aos 85, pessoas que mal sabem ler ou professores.
Na sala infantil, encontrei Vanda Batista, uma das técnicas da biblioteca, a organizar tapetes coloridos, caixas, cenários, bonecada e outros objetos para crianças.
— Que cantinho tão colorido —, comentei.
— Pois é —, sorriu Vanda, — São coisas que utilizamos para dinamizar as histórias que contamos às crianças. Temos um projeto de dar vida aos livros nas pré-primárias e escolas do 1.º ciclo das nossas freguesias. Todas as semanas, vamos a uma escola e deixamos um baú de livros na sala de aulas. Na semana seguinte, recolhemos o baú e levamos outro. Quando vamos, contamos uma história e levamos um cenário ou objeto para não irmos só com o livro. As crianças gostam de ver coisas diferentes e nós tentamos fazer umas coisinhas que as cative mais. Elas estão sempre muito curiosas com qual será história seguinte. Para ilustrar as histórias, usamos as nossas criações, como estes tapetes com bonecada. Uma de nós vai contando, enquanto a outra vai mostrando o tapete e desvendando coisas para elas não se aborrecerem.
— Quem faz isto tudo?
— Todos na biblioteca participam. É um trabalho de equipa, cada um mostra o que sabe. Veja aqui estes tapetes, um é da história de O Nabo gigante, outro de O velho, o rapaz e o burro e esta é da Galinha Pimpona! – exclamou, com um brilho nos olhos.
— As pessoas mais antigas doam botões e tecidos à biblioteca e nós guardámos tudo para fazermos estas brincadeiras para as crianças —, acrescentou Vitória. — Sabe o que lhe digo? O que nos falta em recursos financeiros sobra-nos em criatividade. Quando temos de nos desenrascar, inventamos. Se tivéssemos dinheiro, não inventávamos tanto, porque comprávamos. Assim, dá muito mais trabalho, mas é mais gratificante.
O cantinho dos adereços das histórias na Biblioteca Municipal de Monforte não é apenas colorido, é também mágico. Alguém duvida de que é magia o que acontece quando, através das histórias, transportamos as crianças para mundos distantes e de fantasia? As viagens, reais ou fictícias, são fundamentais no desenvolvimento da imaginação e criatividade das crianças e no enraizamento com o local onde vivem.
“Naquele tempo, as crianças pobres como eu possuíam poucos ou nenhuns brinquedos e os que tínhamos eram adaptados e inventados por nós, porquanto tudo nos servia para brincar ao ‘faz de conta’. Como não havia muito material disponível, uma pedrinha, um pedaço de madeira, uma cana, um pedaço de vidro, um trapo, tudo se transformava num brinquedo ou numa brincadeira. Lembro-me dos anos em que tive de sofrer, vendo passar feira atrás de feira, sem ter aquele boneco de papelão que tanto desejava e do dia felicíssimo em que a minha mãe por fim o pode comprar. Até lá, contentava-me com as belas bonecas de trapo que a minha habilidosa mãe criava com todo o amor do mundo…”, relatou Rosa Maria, que assina com o pseudónimo Romarisa, em À procura das raízes.
A identidade de um lugar é profundamente moldada pela história e experiências das pessoas mais antigas e antepassados. As memórias e tradições passadas de geração em geração desempenham um papel crucial na formação da essência de uma comunidade. “As raízes de que nos fala a Rosa Maria são a identidade deste concelho. Na apresentação do livro, as pessoas reviram-se nestas histórias. Nós brincávamos ali no Largo da Madalena e tínhamos medo do Santo do Chicote, quem viveu não esquece. E quem não viveu, fica com uma ideia de como eram as brincadeiras, como era a escola, o exame da 4.ª classe, as nossas tradições… Em suma, este livro é um retrato do concelho e foi por isso que o escolhi”, acrescentou Vitória Medalhas, que me proporcionou a oportunidade de conhecer e conversar com a autora de À procura das raízes.
“Sempre gostei muito de escrever e de ler. Desde a minha adolescência que entra um jornal na minha casa. Escrevi este livro com o sonho de morar na casa dos meus amigos, que espero que tenham um cantinho lá na estante deles onde possam guardar as memórias de como cresci em Monforte. Eu sou fruto daquilo que se passava nesta terra nos anos 40, 50 e 60”, partilhou Rosa Maria, de 83 anos.
Ao folhear o livro, encontro alguns desenhos assinados por Patico (pseudónimo de Francisco Alberto), artista natural de Monforte, autor da exposição de pintura Como um pássaro que saiu da gaiola, em exibição na Biblioteca Municipal de Lagoa, a segunda que visitei neste périplo. Mundo pequeno. Mundo cada vez mais pequeno, fruto dos avanços na engenharia, tecnologia, comunicação e transportes, entre outros. Avanços que tornaram realidade aquilo que há duas décadas eram fantasias de filmes de ficção científica. Progressos impossíveis de concretizar sem o poder da imaginação e das histórias que nos inspiram a sonhar e a concretizar os nossos sonhos.
Gostava de conhecer a frase na minha camisola que a senhora americana quis fotografar? Ei-la: “Os únicos limites que temos são aqueles que estabelecemos para nós próprios – vive para a história”.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990