Biblioteca Pública de Évora: Em busca de espaços abertos
Foi a primeira biblioteca pública em Portugal e é a única que também é biblioteca nacional, além de patrimonial, tendo sido criada com o objetivo de permitir que todos tivessem acesso ao conhecimento.
“… O toque do fim das aulas nas tardes compridas e quentes do começo do verão tinha o sabor da liberdade, da alegria, da vida.”
A. M. Galopim de Carvalho, O cheiro da Madeira
Tenho uma costela alentejana da parte de pai, natural de Viana do Alentejo, a dois passos de Évora. Confesso com sincero arrependimento: até hoje, dia 7 de maio, nunca tinha visitado a Biblioteca Pública de Évora. Foi Zélia Parreira, a diretora, que me recebeu: “É a melhor biblioteca do mundo e arredores. Por mais que tente, não encontra outra igual! Não é ainda a melhor biblioteca do mundo para os utilizadores, mas para um bibliotecário é um sonho, pois há muita coisa que se pode fazer e muito espaço de crescimento.” Pergunto-lhe se é o trabalho com que sempre sonhou. “Fui bibliotecária durante 19 anos em Moura, mas sempre tive um sonho, que eu achava irrealizável, de vir trabalhar para aqui. Lembro-me de passar ali fora e de imaginar isso.”
A Biblioteca Pública de Évora foi a primeira biblioteca pública em Portugal e é a única biblioteca pública que também é biblioteca nacional, além de patrimonial, tendo sido criada com o objetivo de permitir que todos tivessem acesso ao conhecimento. Frei Manuel do Cenáculo, o fundador, expressou assim o seu propósito: “Para se conseguir a sabedoria, nada há tão útil como uma biblioteca.” Dono de vasta coleção de livros, esculturas e pinturas, Frei Manuel do Cenáculo entendeu que a sua valiosa coleção bibliográfica, estimada à época em 50 mil volumes, devia reverter para a comunidade e, em 1805, determinou a criação da Biblioteca Pública de Évora no edifício onde ainda se encontra e onde alberga uma das mais ricas coleções patrimoniais portuguesas, com fundos de diferentes proveniências e tipologias: pergaminhos, manuscritos, incunábulos, impressos dos séculos XVI a XIX, cartografia, iconografia e documentos musicais.
Ao entrar na Casa Forte, onde estão acondicionados os documentos de maior valor histórico e patrimonial (como por exemplo duas bíblias do Século XIII) em condições adequadas de temperatura, humidade e luminosidade, sinto-me deslumbrado e frustrado. Deslumbrado com todo o acervo que sobreviveu ao longo de séculos aos mais diversos atentados que resultam da passagem do tempo e da ação do Homem; frustrado por querer explorá-los a todos, conhecer o que contam, aprender, e saber ser impossível fazê-lo.
“Talvez consiga vir explorar alguns…”, partilhei com a anfitriã. “Ajudamo-lo no que precisar, há aqui muita coisa que nunca foi explorada por ninguém”, ofereceu-se Zélia. “Recebemos muitos investigadores e atendemos alguns online. Pedem-nos referências e nós enviamos as informações e digitalizações e fazem o trabalho à distância. Além de biblioteca patrimonial, somos biblioteca de leitura pública e de depósito legal e recebemos tudo o que se publica em Portugal, cerca de 40 mil livros por ano. Temos cerca de 100 mil documentos catalogados até aos séculos XVIII e XIX. Os livros correntes andarão à volta de um milhão e já não há espaço no edifício para tudo o que temos. Aliás, cerca de 400 a 600 mil livros não estão catalogados, ou seja, não existem oficialmente.”
— Uma grande montanha para escalar...
— Sem dúvida! Mas a nossa prioridade é garantir os postos de atendimento e a catalogação fica para segundo plano. Por isso, não conseguimos saber ao certo quantos livros temos. A biblioteca pertenceu sempre à administração pública e passou por um período de grande abandono por parte de quem a tinha de servir. Houve várias fases em que por depender de uma entidade que não vinha a Évora, que não conhecia o edifício, as instalações ou o serviço que a biblioteca prestava, nem sequer a cidade, viveu algumas fases muito difíceis, de mera sobrevivência —, lamenta Zélia Parreira, diretora da Biblioteca Pública de Évora há uma década.
Profundo conhecedor de Évora é o professor Galopim de Carvalho, nascido na cidade a 11 de agosto de 1931, e autor de O cheiro da Madeira. “Um exercício de memória, sem a preocupação do relato rigoroso do cronista”, refere o professor na nota introdutória, e que procura ser um “ensaio de reconstituição de um viver coletivo do segundo quartel do século XX”, na cidade e nos campos de Évora.
Partilho um trecho: “Os cântaros de barro, bilhas ou enfusas, (…) as quartas, tapadas com um testo, também de barro, tinham sempre água fresca e com um sabor a terra muito especial e apreciado. Estavam dispostos no poial juntamente com o grande pote de água de serventia à cozinha, coberto com uma tampa de tábua e, sobre ela, o pucarinho com que se lhe tirava o líquido. (…) O copo de água era de vidro grosso com relevos, tinha forma de campânula e pé alto. Estava sempre tapado com um pequeno napperon.
— Tapa o copo, por causa dessas malditas moscas! —, recomendava a avó sempre que um dos netos entrava para beber, esbraseado pelo calor e pelas correrias. As moscas entravam constantemente, vindas da rua, não obstante a cortina de segmentos de caninha fina enfiados em longos cadilhos, suspensos no vão da porta. Por entre eles furávamos constantemente, entrando e saindo, deixando atrás de nós um som algo musical, muito especial, nunca mais ouvido. De pouco serviam aquelas fitas besuntadas com melaço que, desenroladas e suspensas do tecto, atraíam o mosquedo. Quando cheias, pretas de tanta bicheza, eram substituídas.”
A passar pela sala de empréstimos domiciliários, descobri, entre estantes, duas jovens deitadas numa manta alentejana.
— Vêm para aqui dormir? —, brinquei.
— Não, não! Sempre que posso, venho ler e estudar e gosto de estar deitada, mas não para dormir —, defendeu-se Maria Eduarda.
— Eu confesso que uma vez já adormeci... —, reconheceu Ingrid, entre risos.
Maria Eduarda e Ingrid são brasileiras e estão em Portugal a fazer um intercâmbio. A primeira lia Comer, Orar, Amar, de Elizabeth Gilbert, a segunda Sr. Mercedes, de Stephen King.
— Diz-se que as pessoas estão a ler menos. É verdade, Zélia?
— Não creio. Nos últimos anos, com o desejo de pôr os miúdos a ler, escolarizou-se a leitura, que está agora muito associada à ideia de trabalho escolar. Os miúdos pensam: ‘Agora quando saio da escola ou estou de férias já não preciso de ler.’ Não defendo que a escola se afaste da leitura, nada disso, mas acho que há um caminho que precisa de ser pensado, pois neste momento para muitos jovens a leitura não é vista como um ato de lazer, mas como uma tarefa e um ato de obrigatoriedade e ninguém gosta de ser obrigado a nada...
Depois de me inscrever como leitor (sou o n.º 11.835), entrei na Sala de Leitura Geral. Arrependi-me profundamente de não ter visitado a biblioteca antes, sobretudo esta sala, com a qual me emocionei: 72 estantes em madeira albergam 17.565 livros, maioritariamente dos séculos XVIII e XIX, da coleção original doada por Frei Manuel do Cenáculo para a fundação da biblioteca.
Sentei-me a ler O cheiro da Madeira: “Nessas tardes, já no fim do ano escolar, ouvido o toque da sineta, sempre igual, vibrado energicamente pela contínua, a menina Júlia, em gestos ritmados, automáticos de abaixo e acima, anunciando o termo das aulas, numa denúncia da sua própria satisfação pelo fim de mais um dia de inferno a aturar rapaziada irrequieta e barulhenta, saíamos aos atropelos, correndo, também nós alegremente, como bácoros para fora da malhada, em busca dos espaços abertos.”
E não é de “espaços abertos” que todos precisamos para conhecer, aprender, viver, ser felizes?
Recordo as palavras de Zélia Parreira: “Ninguém gosta de ser obrigado a nada.”
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990