Biblioteca Municipal de Beja: “Numa cidade acordada, uma biblioteca sem sono”

Fundada em 1874, a Biblioteca Municipal de Beja é uma das mais antigas instituições culturais da cidade. Foi reinaugurada em 1993 e, cinco anos depois, José Saramago presenteou-a com o seu nome.

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"Por baixo dos meus pés, estava escrito, em letras garrafais, Levantado do Chão" joão da silva
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“… Seria perfeito reunir em um só lugar, sem diferenças de países, de raças, de credos e de línguas, todos quantos me lêem e passar o resto dos meus dias a conversar com eles.”
José Saramago

Li a frase de José Saramago inscrita na parede quando entrei na Biblioteca Municipal de Beja. Analisava o seu importante significado quando percebi que, por baixo dos meus pés, estava escrito, em letras garrafais, Levantado do Chão, título de uma das obras do Prémio Nobel da Literatura. Saramago definiu este texto da seguinte maneira: "Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi o de poder dizer deste livro, quando terminasse: Isto é o Alentejo."

Por cima, na lateral da enorme clarabóia, está o lindíssimo lema da biblioteca: "Numa cidade acordada, uma biblioteca sem sono". Esta frase é da autoria de Joaquim Figueira Mestre, escritor e bibliotecário bejense falecido em 2009, e traduz a constante inquietação desta biblioteca na procura de estar sempre acordada quanto ao seu papel na comunidade.

Exemplo dessa permanente disponibilidade é a resposta ao e-mail que enviei a convidar a Biblioteca Municipal de Beja – José Saramago para integrar a rota desta Road Trip Literária. Dias depois do meu contacto, a bibliotecária Paula Santos ligou-me. Eram 21h30.

— Peço desculpa pelo adiantado da hora, mas aqui trabalhamos até tarde, a biblioteca só fecha as 22 horas —, esclareceu.

Algumas semanas depois, durante a minha visita, Paula, bibliotecária em Beja há 30 anos, explicou-me que a sua missão é “ser uma facilitadora, ligar linhas e, sobretudo, proporcionar à comunidade tudo o que uma biblioteca tem para oferecer, ou seja, informação que permita aos cidadãos estarem bem informados, com sentido crítico e interveniente no desenvolvimento da cidade e da comunidade”.

Fundada em 1874, a Biblioteca Municipal de Beja é uma das mais antigas instituições culturais da cidade. Foi reinaugurada em 1993 e, cinco anos depois, José Saramago presenteou-a com o seu nome. “Depois de receber o prémio, ele quis dar um nome a uma biblioteca e escolheu esta. Já a frequentava há muitos anos, talvez tenha sido por isso. Agora já existem mais seis com o nome dele e nós, em 2019, decidimos criar uma rede de bibliotecas Saramago para, em conjunto com a Fundação José Saramago, promover a leitura da sua obra”, detalhou Paula Santos.

A Biblioteca Municipal de Beja começou por ser o “largo” da comunidade, o ponto de encontro, onde as pessoas conversavam, partilhavam notícias e vidas.

— O largo ainda é aqui?

— Claro que sim —, afirma Paula. — A ideia de largo é a matriz primeira daquilo que é esta biblioteca, ou seja, proporcionar às pessoas, de forma gratuita, através de atividades e da leitura, a oportunidade de conhecer os outros e de conhecer outras realidades, outras formas de ver o mundo. Isto se o quiserem ver, claro, porque há pessoas que leem muito e que estão sempre a ver o mesmo mundo —, continua.

— As pessoas sabem que encontram isso aqui?

— Não sei. O que sei é que as pessoas não sabem, por exemplo, o horário da biblioteca, porque sabem que está aberta sempre que aqui vêm. Por isso, se perguntarmos às pessoas de Beja qual é o horário da biblioteca, a maioria dirá que não sabe. E é um bom sinal.

— Ou seja, sempre que eu estiver acordado ou quiser acordar, a biblioteca está aqui para mim?

— Sem dúvida. Olhe, a dada altura, até fazíamos convites explícitos às pessoas para virem para cá. Durante um período, por exemplo, tivemos um cartaz na porta de entrada que dizia ‘entre que nós fazemos tudo por si’, depois trocámos por ‘entre que nós fazemos tudo consigo’, até que o Figueira Mestre criou a frase ‘Numa cidade acordada, uma biblioteca sem sono’, que nos inspira e que tão bem define o trabalho da biblioteca e o que quer ser.

— E o que quer ser a biblioteca?

— Este espaço está sempre em construção, mas posso resumir a nossa intenção da seguinte forma: 50% representa corresponder às expectativas da comunidade, enquanto os outros 50% representa desafiar as pessoas para o que não conhecem e para a magia da leitura: conversar com um escritor que morreu há 200 ou 300 anos. É através dos livros que continuam a falar connosco.

— Que atividades destaca?

— A noite de contos, todos os meses, que dá conta da palavra contada, da tradição oral e do ouvir. E também os clubes de leitura de pais e filhos. Aqui, os livros infantis são muito requisitados em resultado do trabalho de continuidade que fazemos. Antigamente, eu queria levar um livro para casa e diziam-me: ‘Não podes, tens de estudar.’

“Os miúdos começam com seis meses porque os pais acreditam que é importante terem contacto com os livros e com as histórias”, explica-me Luzia do Rosário. “Temos cinco grupos: dos 6 aos 12 meses, dos 12 aos 24 meses, dos 24 aos 36 meses, dos 36 meses aos 5 anos e dos 6 aos 12 anos, pais e filhos sempre os mesmos e sempre a par”, acrescenta Paula Martins. “O Clube de Leitura já existe há 24 anos, por isso há pessoas que andaram cá em pequenas e que agora vêm com os filhos”, prossegue Luzia do Rosário. “E também vamos às escolas para trabalhar com os miúdos do 1.º ao 4.º ano para tentar que olhem para a leitura como algo lúdico e prazeroso”, finaliza Paula Martins.

Numa sala de leitura, junto à cafetaria, encontrei um senhor na casa dos 70, muito concentrado na leitura de um jornal. Interrompo-o:

— Vem cá muito?

— Todos os dias. Leio quatro a cinco jornais por dia e às vezes umas revistas, mas livros não me puxa. Já li muitos, mas agora já não me puxa…

Roteiro Literário – Escritos na Planície é uma coleção de quatro livros sobre o percurso de quatro autores originários de Beja: Manuel Ribeiro (texto de Gabriel Rui Silva), Mário Beirão (texto de António Cândido Franco), Al-Mu’tamid (texto de Adalberto Alves) e Mariana Alcoforado (texto de Marta Páscoa). Todas as fotografias são de António Cunha.

Debruço-me sobre Mariana Alcoforado, nascida em 1640 e enclausurada à força num convento aos 11 anos para honrar a vontade da mãe, expressa no seu testamento, de que a filha se tornasse freira do Convento da Conceição. Aos 20 anos, enquanto estava à janela, numa troca de olhares, Soror Mariana e Noel Bouton, um jovem oficial francês, apaixonaram-se. O militar visitou diversas vezes a cela da freira, até que um dia foram descobertos. Na sequência do escândalo, Bouton voltou para França, deixando a promessa de que mandaria buscar a amada. Mariana esperou, em vão, à janela. Dessa espera, resultam as Cartas Portuguesas, cujo destinatário é, sem dúvida, Noel Bouton. Todavia, discute-se até hoje se é Soror Mariana a autora das mesmas.

A principal razão para a dúvida é uma “mera consideração tendenciosa sobre as capacidades femininas para a escrita”, expõe Marta Páscoa na conclusão do seu Roteiro Literário sobre Mariana Alcoforado, finalizando com o motivo pelo qual a freira do Convento da Conceição nunca foi esquecida em Beja: “Mantém-se vibrante como símbolo de transgressão e de resistência feminina aos poderes instituídos. Significativamente, pode constituir-se como metáfora de uma cidade que continua a resistir aos que tentam condená-la à insignificância.”

Um murro na mesa contra o esquecimento a que é votado o interior do nosso país? Cada um tirará as suas conclusões. Ler também é um despertador de consciências.

Despedi-me da biblioteca que ostenta o nome do meu escritor preferido para rumar a Évora. Na estrada que rasga a planície alentejana ao meio para ligar as duas capitais de distrito, recordei o par de palavras que Paula utilizou para descrever a sua missão: “Ligar linhas.”

“Se calhar é isso que aqui estou a fazer: ligar linhas”, sussurrei para Mariana Alcoforado, que ocupava o banco do pendura.

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O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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