Liberdade e responsabilidade

As nossas elites determinam o que está certo e errado e não estimam o contraditório.

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Nas últimas duas semanas assistimos a uma série de manifestações de hipocrisia que, não sendo inéditas, ganharam uma dimensão raras vezes vista na sociedade portuguesa. O clamor pela revelação de uma escuta telefónica de relevante interesse público – a intervenção do então primeiro-ministro no despedimento da CEO da TAP – multiplicou o “manifesto dos 50”, não por outros tantos, mas por muitos mais. Comentadores e analistas também responderam, com ira, à chamada. As nossas elites determinam o que está certo e errado e não estimam o contraditório.

Instalou-se, por fim, o imperativo de fazer a tantas vezes adiada reforma da Justiça e, de caminho, se não parecer mal e ninguém se opuser, tratamos de limitar a liberdade de informar. Acabou a era “À política o que é da política, à justiça o que é da justiça”, uma cintilante ideia de António Costa para não ter de sujar as mãos na defesa de José Sócrates, que ficou entregue “à sua verdade” e nunca teve direito à presunção de inocência. Nesse tempo todas as escutas, incluindo as que tinham detalhes da vida pessoal, eram legítimas e mereciam o aplauso geral. Também foi ténue o clamor quando o então ministro Miguel Macedo foi exposto na televisão, num processo – esse sim em segredo de justiça – que acabaria com a absolvição em toda a linha de Macedo e de um idóneo servidor público como Jarmela Paulos.

Preservando a separação de poderes, que é a base do Estado de direito, também eu defendo que o Ministério Público e a procuradora-geral da República devem prestar contas sobre as suas formas de atuação e as suas decisões.

Sobre o processo Influencer e a forma como o tratámos na redação da TVI e da CNN Portugal, lamento muito desiludir os que são dados à simplificação da vida tratando de a conjugar com uma básica teoria da conspiração. Chegar ao processo foi uma tarefa complexa de largas semanas que mobilizou os nossos melhores jornalistas. Não nos caiu no colo, nem nos chegou num envelope. Durante cinco dias uma equipa de cinco repórteres leu, de fio a pavio, cerca de 20 volumes e mais de uma dezena de apensos. Milhares de páginas. Sim, formámos a nossa opinião sobre o que está em causa, mas ainda estamos a fazer perguntas e aguardamos por várias respostas.

O que decidimos emitir, na segunda-feira, 17 de junho, e na terça, dia 18, tinha manifesto interesse público e foi esse o critério que nos regeu. Tão importante como o que emitimos foi o que não emitimos. Quando começámos a trabalhar este caso não sabíamos quem ganharia as eleições europeias, se haveria um jantar em Bruxelas, se António Costa teria ou não condições para ser candidato ao Conselho Europeu. Como dizia um velho camarada de uma redação onde trabalhei ainda no século XX – “A nossa vida são as notícias”. Sim, é legítimo perguntar se aquela escuta em que o primeiro-ministro toma uma decisão política devia estar no processo. Sucede que estava e tem um inquestionável valor informativo, desde logo porque Costa diz uma coisa e a seguir os seus ministros dizem e fazem outra.

Considerar que o “timing das escutas é político” é uma acusação que rejeito liminarmente. Nem sequer digo que tal nunca sucedeu. Comigo, e com a redação que lidero, não sucederia. Tenho demasiada experiência e, desculpem a falta de modéstia, provas dadas. Fui afastado da RTP por divergências com o poder político da altura (2012) e ainda aqui estou.

Nos últimos anos a Informação da TVI e da CNN Portugal revelou muitas notícias que provocaram um sobressalto cívico. Nem todas, pelo contrário, têm a ver com buscas ou escutas. Desde logo o caso das “gémeas brasileiras”, que envolve o Presidente da República e o seu filho e que está a ser alvo de uma investigação judicial. Foi também a TVI que revelou a notícia da mulher grávida que, sem vaga, acabaria por morrer de paragem cardíaca. O caso deu origem à demissão da então ministra Marta Temido. Poderia enumerar muitas outras, mas elenco estas para sublinhar que não olhamos a alvos e sim às notícias e à sua relevância.

Se existir uma tentativa de silenciar ou minimizar a esfera de ação do trabalho jornalístico, estaremos na primeira linha da defesa da liberdade. Máxima liberdade, máxima responsabilidade.

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