Uma estranha tentativa de golpe semeia a confusão na Bolívia

Em poucas horas, os militares ocuparam a praça de La Paz onde está a sede do Governo, mas desmobilizaram de seguida. O mentor foi preso e diz ter agido em concertação com o Presidente.

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O general Juan José Zúñiga foi detido após a tentativa de golpe Claudia Morales / REUTERS
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La Paz amanheceu num ambiente de “calma tensa”, como descrevia o diário El Deber esta quinta-feira, um dia depois da tentativa de golpe de Estado levada a cabo pelo ex-comandante do Exército, Juan José Zúñiga. Os tumultos políticos não são alheios à história do país andino, mas, para já, os detalhes sobre os acontecimentos desta quarta-feira continuam turvos.

A meio da tarde de quarta-feira, os bolivianos foram surpreendidos com a ocupação em poucos minutos por um grupo de militares da Praça Murillo, no centro de La Paz, onde está situado o Palácio Queimado, a sede do Governo assim baptizada por ter sido alvo de um ataque no século XIX. As pessoas foram impedidas de atravessar a praça e foram erguidas barricadas em vários locais. No momento de maior tensão, um dos veículos destruiu a porta do palácio, permitindo a entrada dos militares.

Por esta altura, o Presidente Luis Arce já se tinha dirigido ao país, denunciando uma tentativa de “golpe de Estado” e pedindo aos bolivianos que se mobilizassem contra os militares rebeldes. “Não podemos permitir o regresso das intentonas golpistas”, afirmou Arce, a partir da Casa Grande do Povo, um edifício contíguo à sede do Governo.

Centenas de pessoas acudiram à Praça Murillo para manifestar apoio a Arce e repúdio ao golpe, enquanto alguns militares chegaram a lançar granadas de gás lacrimogéneo. No entanto, ao fim de poucas horas, os militares começaram a desmobilizar e corria a notícia da detenção de Zúñiga, identificado como o mentor da insurreição.

Ao fim da tarde, Arce apareceu na varanda do Palácio Queimado, empunhando uma bandeira boliviana para anunciar a derrota da tentativa de golpe. “Com vocês, com o povo, nunca nos vamos render”, declarou perante uma multidão que celebrava na praça. “Ninguém nos pode tirar a democracia que ganhámos nas urnas e com o sangue do povo boliviano.”

No entanto, ao ser detido, Zúñiga acusou o Presidente de ter combinado consigo um “auto-golpe” como forma de aumentar a sua popularidade. O comandante do Exército disse ter-se reunido com Arce no domingo e que o chefe de Estado lhe tinha dito que “a situação está muito complicada” e que era necessário “preparar algo” para travar a contestação. O militar perguntou-lhe se deveria “ir buscar os blindados” ao que Arce, segundo Zúñiga, terá acedido.

O comandante entretanto detido não mostrou qualquer prova que suporte as suas acusações e o Governo desacreditou de imediato esta versão. Ao fim do dia, o ministro do Governo, Eduardo Del Castillo, afirmou que “Zúñiga carece de verdade nas suas declarações” e disse que as autoridades tinham conhecimento de preparativos para desestabilizações, mas nada desta magnitude. Pelo menos 12 pessoas ficaram feridas e houve cerca de uma dezena de militares detidos, informou o ministro.

História turbulenta

Um dia antes da tentativa de golpe, Zúñiga tinha sido exonerado do comando do Exército por ter dito que os militares pretendiam impedir um eventual regresso de Evo Morales à presidência. Morales foi Presidente da Bolívia entre 2006 e 2019, até ter sido afastado pelas Forças Armadas, numa altura em que era acusado de fraude eleitoral pelos seus opositores políticos.

Depois de ter ficado um ano fora da Bolívia, Morales regressou ao país em 2020 após a vitória de Arce nas eleições presidenciais. No entanto, a relação entre ambos degradou-se nos últimos anos e hoje a esquerda boliviana apresenta uma profunda divisão entre os apoiantes dos dois antigos aliados. Morales não esconde o desejo de regressar ao poder nas eleições do próximo ano, apesar de uma sentença do Tribunal Constitucional ter decretado que não o poderia fazer.

A Bolívia tem uma história política particularmente tumultuosa, mesmo para os padrões da América Latina. Desde 1950, foi palco de 23 golpes de Estado, embora 12 tenham fracassado, fazendo da Bolívia o país do mundo em que este fenómeno é mais frequente, segundo um estudo norte-americano citado pelo El País.

A tentativa de golpe desta quarta-feira surge numa altura em que a governação de Arce é visada por todos os lados. Além das divergências com Morales que dividem a esquerda, o Presidente tem de lidar com uma grave crise económica e uma profunda escassez de combustível.

O analista político Carlos Toranzo prefere não afastar nenhuma hipótese, pelo menos para já. “Não é certo que tenha sido golpe; não é certo que tenha sido encenado. Pelo menos, joguemos com as duas hipóteses”, afirma em entrevista à BBC Espanhol. Apenas uma coisa parece ser certa, garante: “Todos defenderam a democracia e, com isso, foi dado um banho de popularidade ao Presidente Arce, que creio que irá durar muito pouco, porque a crise económica continua tão forte como dantes.”

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