Maria Duran, a “hermafrodita” que a Inquisição não conseguiu queimar

Fugiu do marido (e da sífilis) e integrou o exército espanhol sem ser descoberta. Teve sexo com freiras, que a acusaram de um pacto com o diabo. Esta história “extraordinária” está agora em livro.

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Um auto-de-fé em Lisboa, numa pintura do século XVIII
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21 de Junho de 1744. A manhã já começava quente, o ambiente era calmo, embora as pessoas se amontoassem junto à Praça do Rossio, em Lisboa. Todos esperavam o mesmo: ver começar o auto-de-fé, um género de condenação pública da Inquisição Portuguesa.

Naquele dia, foram julgadas 41 pessoas. Entre judeus ocultos e pessoas acusadas de bruxaria, encontrava-se Maria Duran. O seu nome já tinha percorrido as gazetas manuscritas de Lisboa, que a apelidaram de “hermafrodita catalã”. Era acusada, pela Inquisição, de ter feito um pacto com o Diabo.

Nos autos-de-fé tudo era meticulosamente pensado: primeiro, assistia-se a uma procissão dos prisioneiros pela cidade; depois, ouviam-se as sentenças, em voz alta. Os desfechos podiam ser vários: entre eles, ser-se castigado com chicoteadas, expulso do país ou condenado à morte. E tudo acontecia na rua, para lembrar os prisioneiros e a multidão que Deus perseguia os hereges.

Tal como numa cassete, precisamos de rebobinar esta história. O que aconteceu para que Maria, de 33 anos, estivesse ajoelhada perante uma multidão a ouvir a sua sentença? A história é longa, mas podemos adiantar que teve várias peles: fugiu do marido, assumiu uma identidade masculina e integrou o exército real espanhol. Arranjou uma borracha de água para urinar de pé, usava uma “almofadinha” para preencher a zona da braguilha e não foi descoberta. Mais tarde, viveu em conventos e igrejas portuguesas, onde teve relações íntimas com freiras.

Esquecida durante séculos, a história de Maria Duran é agora recuperada no livro A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa O caso que abalou o Santo Ofício, do historiador François Soyer, publicado em Março. “Esta personagem leva-nos a um mundo que raramente é registado no início da Idade Moderna”, começa por dizer o autor numa conversa com o Ípsilon. “Mostra a sexualidade nas igrejas e conventos, a transgressão secreta das normas de género e o poder que o ‘diabo’ poderia exercer”, exemplifica.

Peitos “oprimidos” e uma borracha de água

Em 2007, aconteceu um “feliz acaso”. François Soyer, doutorado em História pela Universidade de Cambridge, estava em Lisboa. Tinha conseguido uma bolsa de pós-doutoramento e passava vários dias no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, estudando as ligações entre as inquisições portuguesa e espanhola. Por “sorte”, encontrou o processo 9230 do tribunal inquisitorial de Lisboa, relativo a Maria Duran. “Tinha 734 páginas. E quanto mais lia, mais ficava fascinado”, recorda.

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Documento em que Duran promete fidelidade ao Papa: “aparto de mim toda a espécie de heresia”

Comecemos pelo início. Maria Duran era natural de Prullans, uma aldeia na região montanhosa da Cerdanha, na Catalunha, e casada com um aldeão, Ignacio Sulsona. Tiveram um filho, mas o bebé só viveu até aos nove meses. Não se sabe o que terá acontecido. O casamento ainda se arrasta durante algum tempo, até Maria decidir deixar o marido por se ter tornado “muito afrancesado” — referindo-se ao facto de ele ter contraído sífilis.

Mas, se por um lado, os homens encaravam esta doença como uma prova de virilidade, para as mulheres o peso do estigma era grande. Enquanto esposa, Maria não podia recusar ter relações sexuais com o marido, mesmo que estivesse infectado: aliás, à luz da lei na altura, o marido podia violá-la — e o divórcio também não era opção numa sociedade católica do século XVIII. Para Maria, sobrava uma alternativa: fugir, sem olhar para trás.

Naquela altura, viajar sozinho era perigoso, principalmente para uma mulher. Para sua segurança, precisava de uma nova identidade. “Foi assim que decidiu fazer-se passar por homem”, explica François Soyer. Primeiro, mudou-se para Andorra, depois para Rossilhão, em França, e finalmente voltou à Catalunha. Em Barcelona, elevou a sua representação masculina a um novo nível, juntando-se ao exército real espanhol.

Maria passava despercebida entre os soldados. Era alta, de “constituição robusta”, pele morena e cabelos pretos. Tinha a voz “volumosa” e uma “cicatriz ou uma marca redonda numa das faces”, escreve o autor. Para não ser descoberta, foi desenvolvendo estratégias: “Trazia os peitos oprimidos por uma cinta, para que não vissem”, escreve o notário inquisitorial que ouviu as revelações de Maria Duran, citado no livro. Nos dias em que menstruava, usava um lenço dobrado, que depois lavava às escondidas.

Na parte dianteira dos calções, andava sempre com um instrumento “feito de fralda da camisa” e “às vezes uma almofadinha” para criar protuberância na zona da braguilha, indicando a presença de genitais masculinos. Também tentava repetir os comportamentos dos seus colegas: “Trazia dentro dos calções uma borracha de água. Chegava-se à parede, abria a braguilha, apertava a borracha com a mão, mostrando que urinava de pé como o homem, porque ainda que ela estivesse habituada a urinar de pé, como o fazem muitas mulheres, não o podia fazer estando com os calções atados”, lê-se nos documentos inquisitoriais consultados por Soyer.

Embora ninguém desconfiasse da sua identidade, a passagem pelo exército termina em Maio de 1735. A coroa espanhola tinha ordenado que aquele regimento fosse enviado para o estrangeiro e, com medo, Maria decide revelar o seu segredo. Foi expulsa de imediato.

Segue-se mais uma mão cheia de viagens: primeiro Saragoça, depois Madrid, e finalmente, em 1737, decide deixar Espanha. Acaba por se instalar numa “das grandes cidades do século XVIII europeu”. Lisboa.

“Prostitutas arrependidas” e “vagabundas”

Em 2021, depois de um ano a viver em Lisboa para consultar o processo de Maria Duran, François Soyer escreveu este livro na Austrália, onde é professor de História Medieval Tardia e do início da Idade Moderna, na Universidade da Nova Inglaterra, em Armidale. Recorda as madrugadas de Inverno passadas a escrever, bem como os finais de dia, depois de dar aulas à distância horas a fio, em plena pandemia.

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François Soyer é doutorado em História pela Universidade de Cambridge

Foi neste cenário gélido que escreveu sobre a chegada de Maria a Lisboa, em 1737. Sem amigos nem família, Maria viu-se obrigada a pedir ajuda às instituições religiosas. Apesar de não ser fluente em português, consegue explicar que “é uma mulher” e que quer “dedicar a sua vida a Deus”, explica o autor. É assim que consegue entrar no Recolhimento Menino Jesus, em Lisboa, que, tal como a generalidade dos recolhimentos, era um género de repositório de meninas e mulheres, “prostitutas arrependidas”, órfãs, viúvas, mulheres “vagabundas” ou “desamparadas”.

Esperava-se que as mulheres seguissem uma vida de clausura, semelhante à rotina das freiras. Tinham tarefas de culto e trabalhos manuais; os tempos livres eram reduzidos e deveriam viver no maior silêncio possível. Mas, ao contrário do esperado, Maria não dedica a sua vida à oração e é precisamente nestas instituições que começa a explorar a sua sexualidade, tendo relações sexuais com freiras e outras recolhidas.

Muitas delas prestaram, mais tarde, depoimentos detalhados à Inquisição — embora, hoje, não seja possível provar a veracidade destes relatórios. Sabe-se, no entanto, que confessaram ter tido “actos carnais” com Maria e que ela as “tocava como um homem”. A maioria dizia que teria um pénis, descrevendo-o como “um membro viril” e uma “coisa quente e animada”, e acreditavam que conseguiria ejacular, ao verem que os lençóis ficavam “molhados”.

Além destes episódios, relataram ainda que Maria acordava de manhã com hematomas e arranhões — e que isto só poderia ser “obra do diabo”, uma vez que estas feridas “desapareciam depois de serem lavadas com água benta”. Diante este cenário, Maria acabou por ser expulsa de várias instituições religiosas, em Lisboa e em Évora. E, mais tarde ou mais cedo, a sua história chega aos ouvidos da Inquisição Portuguesa.

Um dildo e um dedo

No dia 14 de Fevereiro de 1741, Maria foi presa no Palácio dos Estaus, no centro de Lisboa. Este era um dos vários edifícios da Inquisição Portuguesa — cujo nome oficial era Santo Ofício da Inquisição e funcionava como uma rede de tribunais religiosos que defendia o catolicismo.

Segundo os documentos inquisitoriais, Maria foi acusada de ter feito “um pacto com o Diabo”. A suspeita nascia da sua capacidade de se transformar “num verdadeiro homem” durante “os actos de cópula carnais” e das feridas que teriam sido curadas com água benta. A consequência? “Deveria ser castigada com as maiores e mais graves penas que lhe merecem os seus crimes.”

Maria Duran tentou defender-se. Admitiu ter relações sexuais nos recolhimentos — na altura, as relações sexuais entre mulheres já não eram condenadas pela Inquisição Portuguesa. Mas afirmou ser “uma verdadeira mulher” e não um homem. Negou a acusação de ter um pénis, explicando que “penetrava usando o dedo polegar da mão direita, umas vezes embrulhado na fralda da camisa, outras vezes sem o embrulhar”. Também recorria a “agulheiro de meio palmo”, que fizera com tecido, formando uma espécie de dildo. Acerca dos hematomas e arranhões, diz ter “partido do princípio que tinha sido um gato que lhe saltara para a cama durante a noite”, lê-se nos relatórios inquisitoriais citados no livro de François Soyer.

Ao mesmo tempo que este processo decorria em completo secretismo, sem que Maria tivesse contacto com o mundo exterior, a sua história já corria por Lisboa. Uma gazeta manuscrita, de 4 de Março de 1741, relata rumores e mexericos sobre a “hermafrodita catalã”. “Tornava-se por vezes homem, outras mulher, por pacto com o Demónio”, escreviam sobre Maria, acrescentando: “Varia conforme o seu danado apetite.”

Uma janela para o passado

No mundo mental dos inquisidores, o pacto com o Diabo era a única forma de racionalizar o caso de Maria Duran. Hoje, podemos levantar outras questões: seria Maria uma mulher lésbica, que assumia uma identidade masculina para conquistar outras mulheres? Seria um homem trans?

Existem debates sobre o uso de termos como lésbica ou trans quando se escreve sobre este período. “Nem Maria nem os inquisidores teriam compreendido estes termos”, explica o autor ao Ípsilon. “Mas só porque algo não tinha nome não significa que não existisse.”

A identidade de Maria será sempre um mistério. Ainda assim, o seu julgamento e os relatos inquisitoriais são uma “fonte valiosa” para compreender as normas de género da altura, defende o historiador. É o caso da expressão “como um homem” usada por várias mulheres para descrever o comportamento sexual dominante e até violento de Maria.

Além disso, a história de Maria Duran traz contributos sobre a compreensão clínica do sexo. Perante o depoimento destas mulheres, durante o julgamento, a Inquisição reuniu uma equipa de médicos, cirurgiões e uma parteira para analisarem o corpo de Maria, em especial os seus genitais. O objectivo era perceber se Maria seria homem, mulher ou “hermafrodita”, ou seja, se teria tanto os órgãos masculinos como femininos.

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Pormenor da lista impressa dos prisioneiros condenados no auto-de-fé de 21 de Junho de 1744 DR

Este julgamento coincidiu com um período em que, por toda a Europa, se começava a negar o modelo do sexo único. Herdado da antiguidade greco-romana, este modelo defendia que os genitais femininos e masculinos eram os mesmos. Acreditava-se que, como supostamente os corpos masculinos seriam mais quentes, os genitais eram expulsos do corpo, ficando do lado de fora; ao passo que os órgãos genitais femininos, mais frios, ficavam retidos no interior do corpo. Desta forma, seria possível haver mudanças de sexo naturais depois do nascimento, bastava acontecer uma alteração da temperatura do corpo.

No entanto, no início da idade moderna, a comunidade médica começava a adoptar um novo modelo que propunha uma distinção clara entre os órgãos genitais femininos e masculinos e que, por isso, refutava a possibilidade de alguém ter os dois sexos — o caso de “hermafroditas”. E era esta a linha científica seguida pela equipa que analisou Maria Duran. Depois de vários exames, relatórios e observações, não restaram dúvidas: Maria tinha a anatomia comum de uma mulher.

Uma história por terminar

Em Outubro de 1743, Maria estava há mais de um ano a definhar na cela. As contradições entre os testemunhos das mulheres e os exames médicos deixaram o caso num impasse. Na esperança de a Inquisição arrancar uma confissão, enfrentou uma das técnicas de tortura mais brutais. Chamava-se “potro” e consistia em ter o corpo atado por cordas a uma estrutura de madeira. Depois, as cordas iam sendo puxadas.

Embora os regulamentos deixassem claro que as mulheres não deveriam ser torturadas no potro, foi este o instrumento usado no caso de Maria. Como acontecia com todos os presos, teve de consentir, a um notário inquisitorial, que, se “morresse, partisse os ossos ou perdesse a sensibilidade nos membros”, a culpa seria dela, e não dos inquisidores.

Mas, ao contrário do que esperavam, a tortura não levou a nenhuma confissão. Ainda assim, o conselho geral da Inquisição Portuguesa decidiu que Maria iria ser condenada à mesma, em público, no auto-de-fé — o que referimos no início deste texto, marcado para dia 21 de Junho de 1744. Assim foi.

Nesse dia, às 11h00, o grupo de 41 prisioneiros terá saído do palácio e começado o seu caminho em torno ao Rossio. Estes autos-de-fé funcionavam como uma “representação teatral”, diz François Soyer. Tudo era pensado ao pormenor: desde aquilo que os prisioneiros vestiam até à ordem que deveriam seguir na procissão. Mais tarde, chegaram à igreja dominicana de São Domingos, onde eram lidas, em voz alta, as acusações e sentenças dos condenados. A leitura durou até à meia-noite.

Maria teve de esperar pela sua vez de aparecer diante do rei e da multidão na igreja. Quando foi chamada, aproximou-se do púlpito de joelhos e de cabeça baixa. Para sua surpresa, não foi feita qualquer menção às relações sexuais nos conventos ou à acusação de ter um pénis. “O objectivo poderia ser calar um caso embaraçoso”, justifica o autor. No fim, conheceu finalmente a sua sentença: “Chicoteada e exilada do Reino de Portugal, onde não entrará mais.”

Pessoas como Maria Duran, afastadas da elite eclesiástica, eram quase sempre esquecidas. “Este é um caso raro de uma vida extraordinária que foi registada, descrita e investigada na altura”, diz François Soyer, que escreveu vários livros sobre o início da idade moderna, desde as normas de género da época até à perseguição de judeus e muçulmanos em Portugal.

Mas, afinal, porque é que a história de Maria Duran importa? E qual é o seu contributo para os dias de hoje? “Trata-se de uma narrativa exemplar de como a não conformidade sexual e de género sempre existiu”, afirma. “Não são fenómenos novos, nem concepções modernas e liberais.”

E Maria não é caso único. Uma parte do livro A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa O caso que abalou o Santo Ofício, da Bertrand Editora, é dedicado à análise académica em torno da sexualidade e género. E partilha a história de outras personagens que “transpuseram o género” — entre elas Catalina de Erauso e Elena(o) de Céspedes, naturais de Espanha, que no início da idade moderna também adoptaram uma identidade masculina. “Quantas mais histórias destas saírem dos arquivos, mais aprenderemos sobre o modo como o género é uma construção social e cultural”, acredita François Soyer.

Hoje, continua a ser um mistério o que aconteceu a Maria depois de ser expulsa de Portugal. O último registo é de Julho de 1744: antes de ser libertada, jurou nunca revelar nada do que experienciou neste processo, sob pena de ser castigada. Não se sabe para onde foi, que identidade assumiu. “Ainda era bastante nova. Pode ter tido uma vida bastante emocionante depois de tudo isto”, diz François Soyer. Não se sabe onde estarão os documentos e registos das eventuais aventuras que se seguiram — ou sequer se estes documentos existem. Mas o historiador guarda uma esperança. “Ainda gostava de completar esta história.”

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