Em defesa do alho-porro no São João do Porto

Se o São João trocar em absoluto, como está a trocar, insinuação lenta e furtiva do alho-porro pelo imediatismo da martelada, estará a vender a alma ao diabo.

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Noite de São João em 2017 Paulo Pimenta
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Em duas longas cruzadas entre a multidão do São João do Porto não consegui ver um único alho-porro. Nem vi ninguém a vender, nem ninguém a usar. Nada. Um amigo meu diz que viu um ao longe, seguramente com o mesmo olhar de espanto com que o biólogo olha para uma espécie em vias de extinção. É oficial: o São João do Porto está a perder o seu mais belo e singular símbolo. Sem essas figuras desengonçadas a pairar até acima dos martelos e das cabeças, há um lado rural, mas também um jeito atrevido e manhoso tão próprio da natureza do Porto que se extinguem. Sem, o alho-porro, o São João será uma outra coisa.

Os mais alarmistas dirão que a grande festa tripeira é a prova acabada do fracasso no combate à crise climática. Não há dúvida que o plástico, o dos martelinhos e agora também das gaitas que imitam as infames vuvuzelas, derrotou a expressão vegetal e sustentável da festa. Outros culparão Deng Xiaoping, já que depois da abertura da China ao comércio mundial nunca foi tão fácil e barato comprar bandeiras com pagodes ou martelos entre o pequeno e o assustador king size. Perante a oferta de tantos objectos ruidosos a bom preço da sociedade industrial globalizada, compreende-se a agonia do alho-porro. Que não é de agora: há décadas que os portuenses da era pré-plástico se dizem nostálgicos dos dias em que a planta reinava.

Não sendo caso para novas leis nem para regulamentos municipais, estamos ainda assim perante um caso de progresso às arrecuas. A agonia do alho-porro merece um sobressalto cívico por tudo isso. Como oposição ao império do plástico, como protesto contra a derrota das hortas de Gondomar ou da Póvoa face às linhas industriais de Guangzhou – ou da Bélgica, é a mesma coisa. Mas também como resistência à hegemonia do instante inócuo perante o momento reflectido e sentido. Se o São João trocar em absoluto a insinuação lenta e furtiva do alho-porro pelo imediatismo da martelada estará a vender a alma ao diabo.

O alho-porro pode (deve!) cheirar mal, mas é o instrumento da mais bela manifestação de humanidade e de democracia de todo o São João. Na martelada troca-se um sorriso efémero, diluído na martelada seguinte e nas centenas ou milhares de marteladas da noite. Na abordagem do alho-porro há uma mistura deliciosa entre a malandragem e a sedução. Exige que se identifique e estude uma “vítima”, obriga a uma abordagem silenciosa e discreta, implica o gesto preciso de levar a flor ao seu nariz, impõe um sorriso complementar e determina a maior parte das vezes a conversa. A martelada é automática, a aproximação do alho-porro é sentimental.

Sem os alhos-porros a moverem-se com desengonço na multidão, o São João não deixará de ser a mais extraordinária festa popular do país – só a Senhora da Agonia, em Viana do Castelo, se lhe compara em brio e devoção. Mas perderá parte da sua sedução. Continuará a haver martelos, balões, sardinhas, música pimba (agora também com os ritmos funk das favelas cariocas), festas entre amigos nos bairros e aquela retemperadora sensação de que, nessa noite, somos mesmo todos iguais. Mas sem aquele vegetal de ar triste no horizonte, sem a impertinência e malandrice dos gestos que proporciona, o São João perderá parte da sua essência.

Depois de termos perdido a Ribeira para os turistas, ora aí está uma causa pela qual vale a pena lutar.

Crónica corrigida na parte da entrada do texto às 10h46 do dia 25 de Junho

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