O martelo é o símbolo do S. João — e tudo por causa de um saleiro

Dividiram opiniões, provocaram desacatos e até estiveram na justiça: os martelos começaram por ser um brinquedo, mas agora dominam as ruas do Porto durante o S. João.

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O martelo tornou-se símbolo do São João — e tudo por causa do sal e da pimenta Paulo Pimenta
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Dar marteladas na cabeça de conhecidos (ou desconhecidos, não julgamos) no S. João é uma tradição com mais de 50 anos, mas desengane-se quem pensa que os martelos surgiram para acabar com o cheiro do alho-porro na noite de 23 para 24 de Junho.

Na verdade, a história do martelo é mais complexa do que isso – começou por ser um brinquedo para crianças, mas os adultos apoderaram-se dele. Tudo começa em 1963, quando Manuel António Boaventura viu um saleiro e pimenteiro em forma de fole durante uma viagem ao estrangeiro e decidiu que a forma seria perfeita para um novo brinquedo da fábrica de plásticos Estrela do Paraíso.

Só o facto de fazer barulho já interessava aos mais novos, mas para o tornar mais ruidoso, o empresário acrescentou-lhe um apito na pega. Foi sucesso imediato entre as crianças. Mas os martelos só se tornaram no brinquedo "para todos" que conhecemos hoje depois de um grupo de estudantes universitários ter pedido ao dono da fábrica um brinquedo barulhento para a Queima das Fitas.

Germano Silva, jornalista e contador de histórias, que já era adulto quando os martelos chegaram à cidade, lembra-se do primeiro S. João com eles.

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Os martelos de São João são uma tradição com mais de 50 anos Paulo Pimenta
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Foram inventados para as crianças, mas os adultos adoptaram-no para o arraial em vez do alho-porro Paulo Pimenta

A adesão foi tanta que os comerciantes do Porto se renderam e começaram a encomendá-los para substituir o alho-porro. Na noite de S. João, as pessoas que iam para a festa comiam alho-porro. No século XIX havia quintais com muito alho-porro e era tradição levá-lo para casa e colocá-lo atrás da porta para evitar o mau-olhado. Pelo caminho iam saudando as pessoas”, explica ao P3 Germano Silva.

Conta que nunca foi muito nem de alho-porro nem de martelos. Como trabalhava das 22h às 4h no Jornal de Notícias, festejar o S. João também era (quase) impossível, por isso, preferia deixar o arraial “para os amadores”. Ainda assim, fazia questão de passear pelas ruas da cidade — e levar umas quantas marteladas.

“Nunca deixava de ir às ilhas de São Victor, que era onde se festejava o S. João genuíno, e às Fontainhas.”

Contudo, havia quem não gostasse do brinquedo e reclamasse o regresso do alho-porro. Em 1970, “os saudosistas do S. João tradicional”, como descreve o historiador, pediram à Câmara Municipal do Porto para acabar com os martelos. Paulo Pombo, vereador da Cultura, e o autarca Paulo Valada partilhavam da mesma opinião e alegaram que os martelos iam contra as tradições são-joaninas. O caso passou para o Governo Civil, que proibiu o uso do brinquedo e aplicou multas de 70 escudos (34 cêntimos) a quem não cumprisse.

“Era muito dinheiro na altura. O ordenado de um operário era de 30 escudos (14 cêntimos) por semana”, recorda. Os martelos desapareceram das lojas da cidade. Porém, não foi o suficiente para que os portuenses os esquecessem.

Entretanto, na fábrica Estrela do Paraíso, Manuel Boaventura tentava de tudo para voltar a comercializar os martelos e recorrer à justiça parecia ser a única solução. As audiências nos tribunais duraram três anos, lembra Germano Silva, que conheceu o empresário e escreveu sobre o caso.

O dono da fábrica perdeu na primeira e segunda instâncias, mas, em 1973, o Supremo Tribunal de Justiça deu-lhe razão e emitiu uma autorização que ditava o regresso dos martelos.

Depois disso, a Estrela do Paraíso fez-se pequena para a procura que existia e o dono abriu novas instalações em Rio Tinto. Porém, em 2012, já sob a gerência do neto, fechou definitivamente portas.

Produção de martelos continua

O inventor do brinquedo inspirado no saleiro já morreu e a família mudou-se para o Brasil. Em contrapartida, os martelos nunca abandonaram a cidade do Porto e, em vésperas de S. João, já há montras enfeitadas a preceito.

Neste momento, não existem dados sobre o número de fábricas que se dedicam ao fabrico de martelos, mas a produção concentra-se maioritariamente na zona norte. Em Alfena, a centenária BruPlast, que produz “entre 15 a 20 mil” martelos no final de Junho, é exemplo disso, explica o gerente Júlio de Melo.

Tal como a Estrela do Paraíso, a BruPlast nasceu para fabricar brinquedos há já 102 anos, mas com o passar do tempo foi começando a produzir martelinhos. Segundo o gerente, já é assim há 40 anos e fá-los sempre para os mesmos armazenistas do Porto, Vila do Conde, Braga e Barcelos.

Hoje em dia, as máquinas facilitam o trabalho dos funcionários ao ponto de os martelos estarem prontos em apenas um dia, mas o processo continua a ser demorado. Júlio precisa de quatro pessoas só para os martelos – uma realidade bem diferente da fábrica Estrela do Paraíso, que tinha dez funcionários quando fechou.

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