Uma memória de São João

Não consigo precisar o que faz da farra de 23 de junho o momento mais aguardado do meu ano, mas sei que é uma noite capaz de transcender o tempo e o espaço.

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Megafone P3: Uma memória de São João Paulo Pimenta
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O São João sempre ocupou um lugar especial no meu coração; atrevo-me até a considerá-lo a minha celebração anual favorita, mas não me recordo bem do porquê.

Fecho os olhos, navego nas memórias, sou criança outra vez. Olho em volta, estamos todos reunidos, os corações batem ao mesmo ritmo, sincronizados pela mesma vontade de viver. A cada martelada, uma nova recordação invade-me a mente: a avó que orquestra as panelas, as chamas da fogueira controladas pelo tio experiente, que faz do manejo do fogo uma verdadeira ciência, as crianças que correm apressadas para lugar nenhum, os amigos que se cumprimentam de cerveja na mão, os amantes que abraçam promessas fugazes como esta memória.

Talvez seja pelo som contagiante dos martelos de plástico, que ecoam como risos histéricos enquanto se perdem de mão em mão.

Ou talvez sejam os sabores entusiastas que invadem os terraços com tradições, decorando as mesas com um pouco de alma portuguesa. É provável que sejam as sardinhas extrovertidas descansadas nas brasas, os pimentos coloridos que enfeitam a grelha, as fêveras acanhadas que sempre encontram um espacinho, as saladas avinagradas que anunciam a chegada do verão, e o caldo verde, o grande protagonista da noite.

Quiçá não é a música de bailarico que encontramos perdida em cada esquina, essa poesia tão nobre que aquece o sangue mais gélido. Decerto é o calor que São Pedro faz questão de convidar para a noite que enaltece o seu companheiro. Ou serão os manjericos imponentes que trazem consigo quadras desajeitadas? Têm de ser os enfeites ousados que enchem a Invicta e avisam todos que chegou a hora de sermos felizes.

Não consigo precisar o que faz da farra de 23 de junho o momento mais aguardado do meu ano, mas sei que é uma noite capaz de transcender o tempo e o espaço.

Diria que a noite de São João é incapaz de envelhecer. Continua uma adolescente: livre, irresponsável e vaidosa, não importa quanto tempo passe. Talvez seja essa perpétua juventude que me fascina.

Há a possibilidade que seja o renascimento da cidade, que emerge das amarguras de um ano que passou e as ruas, que noutra noite banal estariam serenas, transformam-se em montanhas-russas de emoções e devaneios que só o São João sabe conjurar.

A noite avança, mas o entusiasmo não diminui. A noite de São João consegue dissipar as preocupações e os arrufos do dia-a-dia. Os balões aventureiros, com as suas luzes tremulantes, sobem ao céu, carregando desejos e sonhos que se misturam com as estrelas. A música continua a tocar, o corpo deixa-se guiar despreocupado, enquanto os meus pés encontram o seu propósito final e acreditam piamente que foram concebidos apenas para dançar.

Ouve-se um som inebriante. As lágrimas do rio Douro sobem ao céu com tons diversos que contrastam com o cenário sombrio que preenche a tela. O fogo-de-artifício reúne os milhares de olhares e faz-nos sentir como parte de algo maior e eterno.

Num ápice, o cheiro dos licores espirituosos e dos manjericos é substituído pela brisa da madrugada e o Sol, outrora adormecido, começa a despontar. Começamos a ceder, os pés latejantes lembram-nos da vulnerabilidade física que nos caracteriza. Uma combinação de cansaço e felicidade apodera-se de mim.

A noite de São João chega ao fim. Digo adeus de forma desajeitada porque já sinto a saudade a instalar-se. Sei que no próximo ano estarei aqui novamente, pronta para reviver a melhor noite de todas.

Antes de me render ao cansaço, percorro mentalmente uma vez mais as ruas do Porto e guardo cada pormenor, cada risada e cada abraço que tornam esta noite a mais especial do ano. E, de repente quando nada o fazia prever, recordo-me: são as pessoas que fazem do São João a minha festa favorita.

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