Precisamos de financiar o jornalismo como o bem público que é
Nas redações que publicam jornalismo de acesso livre acredita-se que é preciso unir as doações da audiência ao financiamento público direto. O país tem de criar condições para a pluralidade mediática.
Acreditamos no jornalismo. Acreditamos num jornalismo que alarga visões, informa sobre escolhas e multiplica perspetivas. Um jornalismo que se aproxima das comunidades porque tem tempo para encontrar histórias e fontes que não têm assessoria de imprensa, para escrutinar comunicados e duvidar de relatórios. Acreditamos que o interesse público deve ser o principal critério editorial das redações, e por isso defendemos a investigação aprofundada e analítica sobre as diversas realidades que nos rodeiam, construindo, tanto na cobertura da atualidade como na investigação, um jornalismo reflexivo sobre si próprio e o seu impacto na sociedade, que aceite como seu dever a procura sistemática de vozes, histórias e realidades que permanecem invisíveis.
O problema da sustentabilidade do jornalismo atual é também um problema editorial: limita quem nos lê e o que damos a ler. A dependência exclusiva do modelo publicitário está muito fragilizada ou mesmo esgotada, e a venda de assinaturas provou-se insuficiente num país sem tradição de subscrição e cuja economia é dominada por baixos salários e precariedade. Além da perpétua política de austeridade a que relega as redações, a insistência monofocal nestes modelos de financiamento incentiva uma ambição de omnicobertura que deixa, na sua rapidez, competitividade e voracidade diárias, muitas histórias por contar e pontos de vista por considerar. O modelo de negócio (ou a lógica de mercado) engoliu a liberdade editorial: uma redação sem capacidade para contratar, e pagar salários dignos, não é livre de decidir sobre como cobre o mundo. Uma redação diariamente pressionada para garantir a sua sustentabilidade não é livre.
O jornalismo português está inserido numa das mais débeis economias europeias e é dos que têm menos acesso a apoio financeiro, quer estatal quer filantrópico. Não há em Portugal qualquer programa de financiamento estrutural para o jornalismo. Publicando-se informação de interesse público, de âmbito local ou nacional, com ou sem fins lucrativos, não se encontram fundos a que aceder, nem na filantropia portuguesa nem nos organismos estatais. Restam-nos bolsas europeias ou norte-americanas. Estamos em contraciclo com a Europa, em que estes pilares permitiram ao longo da última década que surgisse um novo ecossistema jornalístico colaborativo, digital e plural.
Grande parte das pequenas redações sobrevive à custa de trabalho voluntário, precário ou não remunerado, impedindo que o jornalismo que produzem se multiplique. Minam-se os alicerces da liberdade editorial quando não se criam condições para o desenvolvimento de novos órgãos de comunicação social, para a expansão permanente da diversidade mediática. Com mais de metade dos concelhos portugueses em situação de deserto noticioso, sem publicações locais, sobrevivem as que conseguem num deserto de financiamento.
O acesso a fundos estruturais, plurianuais, que permitam estabelecer novas estruturas jornalísticas duradouras é essencial. Há décadas que o financiamento público permite a centenas de instituições artísticas desenvolverem missões culturais de interesse público, ainda que a incerteza domine este sector. Para o jornalismo, nem aí estamos. As vantagens deste modelo podem servir de inspiração inicial. É tempo de estabelecer estruturas de financiamento equivalentes para a informação, controladas por jornalistas, dotadas de autonomia, e orçamento próprio, e que exijam o respeito pelas condições de trabalho dos jornalistas para atribuir apoios. O financiamento público direto, transparente, com critérios claros, isolado do poder político, não põe em causa a independência das redações, nem em Portugal nem na Europa.
Este modelo de financiamento não pode privilegiar os principais grupos de comunicação social, como se verificou com a antecipação da compra de espaço publicitário durante a pandemia de covid-19. A publicidade estatal tende a beneficiar os órgãos de comunicação social de maior dimensão, formulando um apoio indireto a empresas que já lideram o espaço mediático. Os modelos de financiamento público italiano e espanhol, para dar dois exemplos, privilegiam também os grandes grupos económicos, descurando o jornalismo local, o comunitário e o sem fins lucrativos. São duas fontes de inspiração sobre os erros a não cometer.
O financiamento público não é, no entanto, a única fonte para a sustentabilidade do jornalismo. Acreditamos nas doações do público, que deveriam, desde já, estar abrangidas pelos incentivos fiscais da lei do mecenato. Mas apelamos a que quem consome o nosso jornalismo pague pela informação não por ser coagido a contribuir para lhe ter acesso, mas porque reconhece o seu valor. Consideramos a liberdade de informação um direito fundamental. Propomo-nos a uma missão de serviço público. E cremos, por isso, que o bem público que produzimos deve estar acessível a todas as pessoas. O modelo de assinaturas e paywalls limita e segrega as audiências em função do poder de compra, deixando à mercê de informação sem qualidade – e tantas vezes de desinformação – quem já se vê vítima de sistemas opressivos.
O jornalismo que publicamos é de livre acesso. A audiência deve ter a capacidade de cruzar fontes, conhecer outras perspectivas, desenvolver real literacia mediática, fazendo uso da máxima amplitude do ecossistema informativo. Devemos incentivar quem nos ouve, vê e lê a conhecer outros órgãos de comunicação social sem temermos que, forçados a escolher a que informação aceder, alterem a sua assinatura. Acreditamos num jornalismo que colabora, não num que compete entre si. Fazemo-lo sabendo, pela experiência, que as pessoas doam para o jornalismo que responde às suas necessidades, seja diário ou mensal, digital ou em papel, de atualidade ou documental. Disponibilizar sem custos o nosso jornalismo faz com que mais gente o leia, lhe reconheça a importância e o apoie. Incentiva-nos a ter o interesse público como bússola editorial.
O jornalismo é um ato transitivo: só existe para servir o público. Mas, com a quebra dos modelos de negócio tradicionais, esta relação não é suficiente para garantir a sobrevivência dos meios de comunicação e do jornalismo. O funcionamento pleno das redações que servem os propósitos públicos exige um financiamento público que responda às necessidades de cada projeto e garanta a sua independência. O jornalismo precisa de ser encarado como bem público e não como simples mercadoria. O financiamento público é tão necessário ao jornalismo como às artes e à ciência. Só assim se pode garantir a sua sobrevivência.
Não podemos adiar mais o debate sobre os modelos e as necessárias medidas para garantir o financiamento público do jornalismo – um que seja direto, estrutural, transparente, e isolado do poder político e económico. Queremos tê-lo em conjunto, as redações e o público, e por isso as nossas redações organizaram a conferência MediaCon, já a 28 e 29 de junho, uma série de sessões gratuitas de conversa, formação, e discussão, no Goethe-Institut em Lisboa, para que pensemos como garantir à nossa democracia o jornalismo sem muros de que precisa.
Ana Patrícia Silva, Projecto Inocência
Catarina Carvalho, Mensagem de Lisboa
Filipa Queiroz, Coimbra Coolectiva
João Gabriel Ribeiro, Shifter
Luciana Maruta, Divergente
Mário Cagica Oliveira, Bola Na Rede
Mário Rui André, LPP / Lisboa Para Pessoas
Marisa Mendes Rodrigues, Bantumen
Nuno Viegas, Fumaça
Paula Cardoso, Afrolink
Ricardo Cabral Fernandes, ex-Setenta e Quatro
Ricardo Farinha, Rimas e Batidas
Rui André Soares, Comunidade Cultura e Arte
Tiago Sigorelho, Gerador