Posso responder em sioux?

Ainda me impressiona essa ambivalência de se ser sempre descendente da criança que nos principiou e permanece no âmago dos nossos corpos, por muito que eles se alterem, e se venham a alterar.

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"Só as estátuas é que ficam paradas no tempo. Com as peles endurecidas, com os olhos petrificados" Ilustração: Rita Lagarto
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Em algumas tribos indígenas, como os sioux ou os ojibwe, os nomes próprios são atribuídos de acordo não só com o género da criança ou a vontade dos seus progenitores, mas também a partir das características e particularidades de cada um, inspirados em qualidades de animais, forças da natureza, e de acordo com as singularidades de cada pessoa.

Assim, em vez de Tiago, Mariana ou José, uma criança pode ser presenteada com o nome de Biskane: “o fogo que arde”; Makhpia Luta, que quer dizer “nuvem vermelha”; ou Rudá: “aquele que recorda”. Ou até com combinações que resultam em descrições mais extensas e detalhadas como: “sonhador do fogo que cultiva à beira do rio” ou “navio da alegria da vitória que carrega uma adaga”. Mas aquilo que me parece mais fascinante é que uma mesma pessoa pode ter mais do que um nome, e esse nome não é vitalício — ele pode variar ao longo do tempo.

Assim os nomes agregam uma espécie de identidade simbólica, uma cédula poética sazonal que se pode ir transformando e apurando com o tempo. Pode não ser do mais prático quando se pretende tratar de questões burocráticas relacionadas como a atualização do passaporte, o IMI ou o número de identificação fiscal, mas imaginar que aquilo que nos define não fica estanque como uma estátua, que o nome vai envelhecendo e se vai aprimorando, enquanto a identidade também ela muda e envelhece agrada-me.

Sempre que me perguntam o nome, imagino qual seria o meu nome sioux nesse dia: “aquela que vive no fio da navalha e circula com a inspeção do carro em atraso” ou toupeira míope a precisar de trocar de lentes por orgulho insensato e falta de liquidez”. Depende do dia. Ana é bonito, mas, convenhamos, não é propriamente original.

O mesmo se aplica à idade. Sempre que alguém me pergunta a idade, sou atravessada por uma tensa meditação de um microssegundo que me atribui uma expressão que me apelidaria de: “aquela cujo sobrolho se assemelha ao do falcão atacante”. E não por me parecer desagradável ou sequer deselegante que me perguntem a idade — nunca entendi porque é que “não se pergunta a idade a uma senhora” —, afinal de contas não há nada mais involuntário, de inimputável, queira ou não queira, faça ou não faça por isso, faço anos, tenho uma certa idade, é uma questão de contabilidade básica. E se me atrapalho nas contas, basta descontar o ano em que nasci ao ano em que estamos, uma operação elementar.

O meu problema não é matemático, não é o algarismo em si que me leva a franzir o sobrolho com a resposta, a suster a idade na garganta. O problema é que, mesmo quando acerto o número, sinto que falho sempre na resposta – porque, apesar de o número ser objetivo, ele parece-me sempre impreciso e inexato, incapaz de traduzir a parcela subjetiva da idade. Como se o denominador não fosse suficiente para acomodar todos os cálculos, as somas dos dias, dos anos, a quantidade de todas as coisas que não consegue medir, como se a conta não pactuasse com a realidade, a deixar de fora as casas decimais, as outras casas, as que se habitaram e as que ficaram por habitar, as divisões e as subtrações, as incógnitas, as escolhas múltiplas e as escolhas impossíveis, os excessos e as perdas, numa matemática imperfeita.

Preferia responder em termos qualitativos e não quantitativos. “Que idade tens?” Tenho “a idade em que adormeço irremediavelmente se tento ver filmes deitada no sofá a partir das dez da noite” ou “aquela em que me lembro com rigor de letras de músicas inúteis, mas não sei onde meti as chaves do carro, mesmo quando estou com elas na mão, nem sei do que estava à procura quando entro numa divisão à procura de alguma coisa”. Ou ainda: “aquela em que a lombar teima com as cadeiras, a cervical acusa falta de desporto na adolescência, e o tórax guarda algumas más decisões, uns quantos amores bem vividos, boas memórias à mesa” Idade? “A da inaptidão para fazer diretas e/ou dietas, para aturar conversas de cerimónia e/ou pessoas de que não gosto”. “Que idade tens?” “Em numérico ou em sioux?”

É por isso que não me ponho a adivinhar as idades das pessoas. Detesto que me peçam para acertar nas idades, entro em pânico, meto os pés pelas mãos. Quando alguém me pergunta “Que idade me dás?”, a minha resposta é sempre a mesma: “Trinta.” Três. Zero. Isto aplica-se quer a interpelação seja feita por um calvo septuagenário em situação de conversa de café, ou caso a pergunta me seja feita por pais orgulhosos acerca das suas crianças na pré-puberdade numa festa de insuflados. Respondo invariavelmente o mesmo número, com a cadência dos pregoeiros da extração de bolas da lotaria de Natal. “Trêêês… Zero!—, e na mesma medida recebo amiúde uma reação perplexa por parte do inquiridor (exceto se a pessoa tiver trinta anos e eu tiver realmente acertado).

A dada altura, o senhor que trabalhava na caixa da mercearia por baixo do meu prédio, achou-se encantado por mim manifestava uma paixão com laivos de pré-adolescente pela minha escolha de frutas diária, pela forma como eu empoleirava os óculos de sol na cabeça quando abria a bolsa de moedas para pagar e achou por bem procurar saber da minha idade objetiva. Ele era do Bangladesh, mal falava português e lá nos íamos encontrando na comunicação, naqueles breves minutos das compras, entre o inglês e o português, entre as contas e os gestos.

Eu lá o ia ajudando com os números e os nomes em português, que ele ia aprendendo a pretexto de conversas sobre os preços da fruta, mas também sobre o dia de calor, a música que ele ouvia na pequena coluna de som, a arriscar os fonemas em português, que até pareciam pegajosos e se colavam na língua. E entre o talão com número de contribuinte e o troco, ele lá ia devolvendo lisonjas: “Quanto é? How much?” “Four euros. You... Very beautiful.” “Ah… obrigada. Só tenho assim…” “Yes! No problem…”.

Um dia, depois de me oferecer muitas pastilhas Gorila, no final das compras, ao longo de vários meses, lá se encheu de coragem e perguntou-me a idade. Disse-lhe sem sequer fazer contas nem cálculos, com a pastilha Gorila na mão e um sorriso no rosto: “Quarenta e um.” Pausa. Longa. Silêncio. Profundo. Nunca vi a expressão de terror de um índio sioux ao ser surpreendido, indefeso e no meio da noite, por um urso de várias toneladas, ou ao encontrar a sua plantação de milho destruída por um bando de cowboys prestes a atacar a aldeia, mas deduzo que seja qualquer coisa como aquilo que se verificou no rosto do pobre homem, que ficou congelado numa expressão de espanto, horror, e desilusão. “No… No... No!”, disse, não graciosamente, enquanto abria as mãos em forma de leque naquilo que só podia ser um movimento de magia negra (ou do “Dragon Ball Z ”), como se estivesse a espantar o número 41, a afugentá-lo, como quando se tentam limpar os chacras, ou as más energias, ou no caso, a resposta dececionante, os anos a mais, a resposta errada. Nesse dia desci no elevador para comprar morangos com o cognome “Rapariga descontraída que se acha agradável entre a vizinhança” para regressar “Senhora madura à beira de um ataque de fruta procura nova mercearia para relação estável”.

Lembro-me muitas vezes de dois filmes que vi repetidamente em criança quando tinha sensivelmente a “idade em que via a mesma cassete VHS vezes sem conta, porque não havia Internet e se via o filme que se tinha gravado no domingo à tarde”. Um deles era o Big, com o Tom Hanks, que contava a história de um rapaz de 12 anos que via o seu desejo de ser mais velho concretizado, e acordava no corpo de um homem adulto (ele próprio) mas com 30 anos. O outro, A Morte Fica-vos tão bem, era um em que as protagonistas Meryl Streep e Goldie Hawn tomavam uma poção mágica para ficarem jovens para sempre, e, apesar de continuarem a somar a idade, os seus rostos e a sua pele mantinham-se lisos e intactos, como as esculturas da antiguidade clássica feitas em mármore: rijas, polidas, aparentemente perfeitas, apesar de esconderem dezenas e centenas de anos debaixo da sua forma imutável. Nunca envelheciam: mantinham aquele aspeto de: Trêêês. Zeeero.

Recordo-me de ver estes filmes inúmeras vezes, de antecipar as cenas, os cortes, as deixas, as piadas, as tropelias. Percebo agora a posteriori, como a maioria das coisas que compreendemos verdadeiramente, e que precisam de ser vividas antes, e só serão entendidas como resultado da soma do depois que o que me ligava aos dois filmes era precisamente essa noção de permanência da infância dentro do corpo adulto. A contradição cronológica e a ambivalência física de hospedar na fisionomia que amadurece as vontades e os desejos infantis daquelas personagens teimosas, intensas e imaturas, que se debatiam com os seus corpos envelhecidos, efémeros, caducos, degradáveis, finitos. Impressionavam-me aquelas figuras desencontradas na idade dos seus corpos, e que por isso insistiam em permanecer fixas, impermeáveis ao correr do tempo. Como pessoas presas em esculturas, com o rosto vítreo e rígido.

Ainda me impressiona essa ambivalência de se ser sempre descendente da criança que nos principiou e permanece no âmago dos nossos corpos, por muito que eles se alterem, e se venham a alterar a posteriori, mesmo quando se vão ramificando e entortando com o crescimento, sulcados pelos anos, talhados pela matemática inexata das coisas que nos dividem ou acrescentam. Parece que andamos sempre dessincronizados entre corpo e idade.

Como quando ouvimos o som desfasado da imagem: A senhora quer... “A senhora? Qual senhora!? Eu?!” Falha o sincronismo: o que ouvimos dizer sobre nós não corresponde à imagem que temos de nós mesmos. O movimento não se sincroniza com a destreza. A energia não se sincroniza com as horas necessárias para as tarefas. A vontade não se sincroniza com o desejo. A expectativa não se sincroniza com a maturidade, a maturidade não se sincroniza com o património de experiências, as experiências não se sincronizam com o resultado, o resultado não se sincroniza com a esperança que perdura, perpetuamente infantil, de sermos um bocadinho mais antes ou mais depois do que somos agora. A criança não se sincroniza com o adulto. Com a adulta.

E o tempo raramente se sincroniza connosco, ou comigo pelo menos, que o vejo fugir ou empastelar, trocista, a marcar riscos novos, como aqueles traços verticais e horizontais que se marcam nas paredes a contar de cinco em cinco, mas inscritos no meu corpo, na minha pele. Mesmo quando o tento contrariar, mesmo que o tente congelar, como numa estátua de mármore, não consigo anular os traços, as marcas — o meu rosto não me obedece, enrugando expressões, engelhando tensões, expandindo espantos, contraindo desejos, diante dos pequenos transtornos tais como o episódio da mercearia, e ainda mais diante dos maiores. Estão todos marcados em braille. Como se o tempo estivesse a brincar comigo, como se fosse uma criança, a pele a rir-se às gargalhadas. A contabilizar os dias. A garantir que nada fica para trás, porque se sobrepõe no corpo.

Só as estátuas é que ficam paradas no tempo. Com as peles endurecidas, com os olhos petrificados, absortas ao passar das horas e dos anos — na matemática exata da arqueologia que trata de achar o que não é vivo. De todas as contabilidades relativas e subjetivas, vou reparando que o meu maior ganho na idade foi precisamente o de achar a minha contradição. O de me pacificar com o inconciliável: a desejar o impossível, na tarefa de sarar o irreparável e, por isso mesmo, permanecer viva, para ir sempre ao encontro da ambivalência que um nome traduz. A conciliar o meu ânimo de criança no meu corpo de adulta, a descobrir que há saudades que por mais que se estanquem vão crescer, e que as coisas felizes que se somam também multiplicam espaço para a dor. Que há distâncias que são para dentro e portanto impossíveis de alcançar, mas que há gestos que podem ser do tamanho de uma casa onde podemos habitar, e pessoas também, e que as pessoas que nos abrigam nos condenam a saber que um dia também elas desaparecem com o tempo. Como num cálculo imprevisível em que o resultado nunca é a soma das partes, mas a existência do negativo que elas carregam.

No meio da contradição lá me tento acertar no tempo (o que é difícil, porque o tempo não para quieto nem por um segundo). Lá tento habitar esta escultura perecível e contraditória. Viva. Tenho truques que fui aprendendo com a idade: não fazer duas coisas ao mesmo tempo, não olhar tanto para o telemóvel multiplicando tarefas inconstantes, dar tempo ao tempo para deixar escoar as emoções que tenho pressa em deixar passar — sobretudo aquelas de que não gosto. A esculpir uma idade irregular e rugosa, longe da imagem de uma escultura de mármore polida, sem ranhuras, nem vincos de espécie nenhuma. Mesmo que isso me traga emoções contraditórias.

Gostei de um nome sioux, que na verdade não é foneticamente muito distante do meu nome de baptismo: Aiyana, “aquela que vai florescendo para sempre”. Que idade tenho? Se fizer as contas são: “Quatrooo. Ummm!” Mas… Posso responder em sioux?


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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