Carta de uma velha anónima: “Não acho graça a nada”

E por falar em netas, ser avó é talvez das poucas alegrias do envelhecimento. É um sentimento incomparável e aperta-me o coração saber que as vou perder, que não estarei cá para ver o seu crescimento.

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"Eu gosto do meu marido. Deus me livre ter outro" Magda Ehler/pexels
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Eu sou muito negativa quanto ao envelhecimento. Tenho muitas dores, desconforto, não acho graça a nada. Ser velho é mesmo uma… Onde é que anda aquele emoji que a minha neta me enviou? Fica sem o emoji. Vocês entendem.

Gostava de viajar, gostava de passear mais, mas a reforma é tão reduzida, que só o meu quintalito me salva das quatro paredes. Os meus filhos vêm-me visitar, gosto muito deles, mas às vezes, são tão estúpidos. Começam a querer ditar regras na minha casa ou até mesmo em mim, que "devia sair mais", que "devia isto e aquilo".

Vale-me o telemóvel. No meu tempo, para aprender um ponto de bordar, era uma dificuldade; hoje há 500 mil vídeos a explicar tudo e mais alguma coisa. Mas também se vê muita mentira nas redes sociais. E tudo se insulta. Às vezes também passo dias sem mexer no telemóvel. Começa a irritar-me, tanto como o meu marido. Mas continuo a gostar dele, coisa rara na minha idade. Vejo muitas mulheres a odiarem os maridos no fim da vida e também o contrário. Muitos homens a fazerem gato-sapato delas. Eu gosto do meu marido. Deus me livre de ter outro... Mas ouviu-me partir os ovos e perguntou: "Vais fazer outro bolo?" E depois, se não faço bolo, remata a seguir à refeição: "Nem um bolinho temos para o café..."

Há dias, dei por mim a pensar na minha própria avó, como foi dura a vida para ela. O marido fugiu e deixou-a com três filhos. Aos 45 anos. Não voltou a ter mais ninguém. Não voltou a ser amada. Hoje, seria impensável. Olho para as minhas netas e fico toda feliz de ver que estão com quem querem, as vezes que quiserem. Às vezes dá-me um pouco de inveja. Já não posso ser assim jovem no tempo delas. Casei com o primeiro e não conheci outro. Sou feliz, como já disse. Mas, se fosse hoje, se fosse hoje, eu tinha aproveitado muito mais.

Eu era tão bonita e a minha mãe sempre com medo, protegendo-me, orientando-me para que escolhesse bem "o tal", que seria para toda a vida. Mas que seca, como diz a minha neta. E por falar em netas, ser avó é talvez das poucas alegrias do envelhecimento. É um sentimento incomparável e aperta-me o coração saber que as vou perder, que não estarei cá para ver parte do seu crescimento. Não sofro de solidão nem de abandono, como tantos conhecidos, não esquecendo que muitas vezes o sentir-se só pode acontecer no meio da multidão. Além do meu marido, tenho três gatos, que se comportam à altura da capacidade dos meus movimentos. Querem festas, colo e comida. E isso eu posso dar, com fartura.

Gosto de cozinhar e saber, sem modéstias, que ninguém faz um arroz-doce como o meu. Faço palavras cruzadas diariamente e tento manter-me a par da atualidade. A minha neta, quando chega a casa, muda de canal. Eu deixo, porque é ela. Mas, de resto, estou sempre a ver notícias e às vezes aqueles programas dos crimes. De noite, o meu marido escolhe um filme. "Gostas deste?" Não gosto, mas deixo passar. Adormeço tranquila no sofá e às vezes acordo, reclamando: "Só escolhes filmes de tiroteios."

Há dias, conheci uma senhora da minha idade que vivia em Londres, mas decidiu aproveitar a reforma em Portugal. Como é diferente o envelhecimento que ela exibe: bem-disposta e humorada, sem marido, mas toda colorida e decidida ainda a conhecer um novo amor. Gabo-lhe a paciência. Acho os homens da minha idade, na sua maioria, uns tontos. Convidou-me para ir caminhar de manhã e arranjei uma desculpa. Mas ela vai todos os dias, de calções bem curtos a mostrar a pele flácida, sem se importar com quem passa. Em Portugal, as velhas ligam muito ao que os outros pensam ou dizem.

Eu sou uma velha, cheguei aos 75 anos, tenho cartão de idoso e benefícios nas piscinas, nos ginásios, nos transportes. Estou naquela altura em que irritantemente me dirigem aquele olhar, que não vos sei explicar. Vou dar um exemplo: quando estamos para aí virados e não discutimos, eu e o meu marido caminhamos de mão dada, e damos beijos na boca. Quem passa, sendo mais jovem, enternece-se. "Olha os velhinhos… Que queridos…" Antigamente, eu e o meu marido não recebíamos olhares enternecedores, mas de desejo e inveja. "Que dois nacos ali vão!..."


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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