Larga o telemóvel, pá!
A empregada encheu-lhes os copos. Brindaram, olhos nos olhos, corpo no corpo e por aí fora que a imaginação é das coisas mais belas com que o ser humano nasceu.
Quando dei entrada no hotel, perguntei a que horas abria o restaurante.
— Às 19 horas —, respondeu-me o simpático rececionista. — Se puder, vá cedo, o nosso restaurante costuma ser muito procurado.
Às 19h05, apresentei-me para jantar. Quatro mesas estavam já ocupadas: uma com quatro pessoas, outra com três, outra com duas e outra com uma. Parece mentira, mas não é.
— Está sozinho? —, perguntou a empregada de mesa.
— Não, sou eu e este livro —, gracejei.
— Desculpe? —, inquiriu, intrigada.
— Nada, nada, coisas minhas —, disfarcei.
— Pode ser esta? —, perguntou, apontando a mesa ao lado de um casal, uma mulher e um homem, ambos nos seus 35 anos.
— Sim, claro.
Sentei-me e disse "boa noite" ao casal. Não responderam, nem sequer olharam. Depressa percebi que não fora por indelicadeza que me ignoraram. Estavam, simplesmente, envoltos por uma bolha de paixão e não deram, porque não tinham como dar, pela minha presença.
Ela asiática, ele espanhol, olhos de um nos olhos do outro, ouvidos de um na boca do outro, boca de um na boca do outro, respiração de um na respiração do outro, suspiros de um nos suspiros do outro, corpo de um no corpo do outro, gemidos de um nos gemidos do outro e por aí fora, que eu já me estiquei na descrição e há que deixar espaço para cada um, pois a imaginação é das coisas mais belas com que o ser humano nasceu.
A pose de ambos: espinha ereta, vestido vermelho, cabelo arranjado, saltos altos, fato impecável, lenço e gravata a condizer com o padrão do vestido, o fulgor dos sapatos engraxados, os sorrisos, tanto brilho. Uau, que quadro!
Chegou o vinho. Ele provou e aprovou. Pediu à parceira que provasse. Ela pegou no copo dele e beijou-o, provando a saliva, não o vinho. Aprovou, claro. A empregada encheu-lhes os copos. Brindaram, olhos nos olhos, corpo no corpo e por aí fora que a imaginação é das coisas mais belas com que o ser humano nasceu.
Pousaram os copos. Ele desviou momentaneamente o olhar para o telemóvel, pousado no banco corrido em que estava sentado. Pegou-lhe. Encolhendo os ombros, sorriu para a rapariga, como que pedindo permissão para utilizar o aparelho. Ela não mexeu um músculo, ficou tão inexpressiva quanto se pode ser. Ele não percebeu o recado. Nem viu — como eu vi porque estava de fora —, abrir-se uma brecha na bolha. De início, a abertura era pequena e inofensiva. Mas depressa a brecha se tornou numa porta, depois num portão, e por fim numa enorme ventania que atirou cá para fora o pobre espanhol e, de caminho, apagou a chama da vela que reflectia nos copos de tinto.
Ainda assim, ele não largou o telemóvel. De vez em quando, a medo e incomodado, olhava para a rapariga, mas por nada deste mundo nem de outro qualquer largou o telefone. A dada altura, pensei em dar-lhe uma cotovelada e gritar-lhe “Larga o telemóvel, pá!”, mas já era tarde.
Ela deitou a mão à mala e tirou o telemóvel. Ligou-o, apontou a câmara para si própria, penteou-se, retocou o batom, tirou selfies, primeiro a solo, depois com o copo ao lado do rosto. E ele a dedilhar no telemóvel, “work, work”, gemia de vez em quando. A comida chegou. Sem “enjoy” ou “buen provecho”, ela começou a comer. Um minuto depois, ele pousou o telemóvel no banco corrido. “Tarde piaste”, lia-se no olhar dela pregado no bife. Foi-se a pose, a espinha ereta, o sorriso e o brilho dos sapatos engraxados.
Jantar a dois é jantar a dois, não é a três. Ou quatro, ou cinco, enfim, já perceberam a ideia. Por muito íntimas que duas pessoas sejam, podem, num instante, ficar separadas por uma distância infinita. “As casas morrem aos poucos, como as pessoas e os amores”, li pouco depois no livro que ocupava o outro lugar da minha mesa.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990