Pogacar fez do Giro um treino para o Tour
Tadej Pogacar, que até pareceu ter mais para dar, não só ganhou a Volta a Itália como destruiu a concorrência e tornou a corrida aborrecida. Valeu a pena? Falamos disso em Julho, em Paris.
Antes da Volta a Itália, escreveu-se nestas páginas que “talvez a modalidade nunca tenha visto neste século uma “grande volta” com um favorito tão óbvio e tão distante de todos os outros” e que haver Tadej Pogacar na corrida poderia “acabar por espoletar uma das provas mais aborrecidas dos últimos anos”. E disse-se mais: “Esta será uma previsão audaz, mas ver o esloveno de rosa do primeiro ao último dia do Giro não é uma utopia total.”
Não se tratou de especial mérito de adivinhação, mas sim de uma mera constatação de que o favoritismo do esloveno era demasiado evidente. Todas estas eram previsões fáceis e não carecem de elogio a quem as desenhou – até porque quase todos o fizeram. “Por triste que seja para os adeptos sedentos de espectáculo, os possíveis azares parecem ser os principais adversários do esloveno”, também se pôde ler por aqui.
Para azar de todos os que apreciam ciclismo, tudo se confirmou: Pogacar ganhou a Volta a Itália, ganhou com uma vantagem gigantesca, vestiu a camisola rosa desde o segundo dia (a previsão de liderança desde a etapa 1 falhou), promoveu uma das provas mais aborrecidas dos últimos anos – pelo menos em matéria de luta pelo triunfo – e teve como principais adversários os possíveis azares, que não aconteceram.
Em suma, por ser tão bom, não havia como não ter ganhado a corrida e não havia sequer como não ganhar com a vantagem com que ganhou – foram 9m56s à frente de Daniel Martínez e mais de dez à frente de Geraint Thomas. E só a desvantagem gigante reduz um resultado que, noutras condições, seria muito elogiável por parte de Martínez.
Ofensivo ou defensivo? Talvez os dois
Importa dizer também que a premissa que falava de uma prova aborrecida, pela supremacia de Pogacar, não pode ser utilizada de forma leviana e simplista. Porque sim, foi uma corrida tremendamente aborrecida na luta pelo triunfo, mas acabou por ter alguns motivos de interesse. Porquê? Porque esteve por lá Tadej Pogacar, já uma lenda do ciclismo em diversas valências.
E é curioso que o ciclista esloveno tenha desenhado um paradoxo no qual foi o causador da monotonia e, em simultâneo, o precursor da animação – porque é disso que se faz Pogacar. Atacou bastante, venceu também bastante, animou as etapas, sorriu muito, brincou, ofereceu brindes ao público e recompensou com ofertas alguns adversários que perderam etapas contra si. No fundo, divertiu e divertiu-se.
Outro paradoxo curioso é que deu a sensação de que Pogacar foi, em simultâneo, defensivo e ofensivo. Porque é legítimo dizermos que, caso quisesse, o esloveno poderia ter levado para casa oito ou nove vitórias em etapas, em vez das seis que somou. E que poderia, com maior ímpeto ofensivo, ter acabado com 12, 13, 14 ou 15 minutos de vantagem para toda a gente.
Mas também pareceu, ao mesmo tempo, que Pogacar poderia ter-se poupado mais, já que tinha o Giro encaminhado praticamente desde o primeiro dia e “no bolso” depois da primeira semana. E poupar-se significaria ter sido menos audaz e ofensivo em momentos nos quais uma postura mais racional lhe permitiria guardar energia para a Volta a França que ainda aí vem no Verão.
E só alguém como Pogacar, com a sua forma de correr muito própria, permite que tenha parecido, em simultâneo, um “louco” ofensivo e um gestor de energias.
Mas os factos são o que são e, no fim das contas, Pogacar levou seis etapas e ganhou com quase dez minutos de vantagem, um recorde em “grandes voltas” desde 1965. Será possível alguém fazer isto em poupança?
Todos os caminhos iriam dar a Roma
A monopolização total do Giro por parte de Pogacar esfria qualquer intento de ser escrito um texto detalhado sobre as etapas e o decorrer da prova. É redundante explicar de que forma o esloveno chegou a Roma, já que o desfecho estava escrito qualquer que fosse o caminho. Com Pogacar, todos os caminhos iriam sempre dar a Roma.
Primeiro, não teve rivais sequer próximos do seu nível – os que existem no ciclismo actual viram a corrida no sofá, por motivos variados. Depois, o esloveno mostrou um nível superlativo no arranque da temporada, adicionando esse detalhe ao já parco valor dos adversários – que se prova pela inexistência, além de Pogacar, de um único ciclista do top 15 a vencer uma etapa neste Giro.
O esloveno tinha ainda uma equipa montada por si, com corredores da sua confiança, e um Giro desenhado ao seu estilo, com uma boa carga de contra-relógio e um espectro montanhoso perfeito para as suas virtudes: menos longo, mas mais explosivo.
E o que se passou além de Pogacar? Não muito. Deve ser destacada a vitória de Jonathan Milan na luta entre os bons sprinters em prova, já que o italiano levou a camisola dos pontos e três etapas para casa, contra outras três de Tim Merlier (venceu em Roma neste domingo) e uma de Olav Kooij.
Acabado que está o Giro, a única coisa má para Pogacar – e está por provar que o seja – só poderá ser aferida daqui a uns meses. Depois de três semanas em montanhas italianas, estará em condições de ganhar o Tour? Se sim, então estamos perante uma loucura – no bom sentido. Se não, então tudo isto poderá não ter valido a pena.